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A mostrar mensagens de junho, 2010

A passadeira

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Quando volto à superfície, ao topo da escadaria da estação do metropolitano, tenho uma passadeira controlada por semáforos luminosos. Todos os dias, sem excepção, encontro o sinal verde para os peões. Hoje, pela primeira vez, isso aborreceu-me. Senti a minha vida como que cronometrada. Pensei que isso é totalmente inadmissível e reagi conforme. Infelizmente, não me ocorreu nenhum gesto melhor que ficar parado no passeio, em desobediência àquele detestável homenzinho verde, debaixo do olhar entediado dos condutores. Assim que o sinal mudou, os carros arrancaram com a impaciência que os caracteriza, indiferentes à minha luta. Ali me quedei, enfiado, à espera que novamente o sinal ficasse verde para mim. Quando isso aconteceu, apenas cruzei a estrada. Em vão tentei justificar-me durante todo o restante percurso até ao emprego - "Não, aquele sinal não te permite avançar. Ele ordena-te que o faças." Mais tarde, enquanto bebia um café numa pausa do trabalho, contei o sucedido a um

A traição da Beleza

Lúcio não concordou com a atribuição do prémio de Melhor Jogador em Campo a Cristiano Ronaldo. De facto, para quem assistiu à partida, destacar desta maneira o avançado português equivale a apagar dos registos histórico-mitológicos do Futebol o mui apreciável duelo travado justamente entre os dois capitães, em particular durante a segunda metade do desafio. Simultaneamente (se é que é possível), esta atribuição define Ronaldo como vencedor desse particular e necessariamente Lúcio como aquele que saiu vencido. E, mesmo sendo isto falso, não se trata, porém, de "justiça", como disse Lúcio. Trata-se, isso sim, de traição à Beleza do Jogo. Qualquer defesa anseia defrontar o melhor dos avançados. E vice-versa. Num confronto eminentemente físico, imperou sempre a lealdade. O talento dos dois especialistas fez o resto, naquilo que foi, segundo a expressão consagrada, um "espectáculo dentro do espectáculo". Cada músculo dos dois craques transpirava prazer, mesmo quando o ca

Inevitável fraqueza

Em vão tentamos ocultar as nossas inevitáveis fraquezas. E, no entanto, nada beneficiamos se, aceitando-as (aceitando-nos), as não disfarçarmos. A interpretação do Eu baseia-se, fundamentalmente, no Outro, no Próximo - bem entendido, naquilo que Ele nos deixa presenciar ou conhecer -, numa lógica de comparação que favorece a busca incessante das falhas alheias. E, inevitavelmente, lá as encontra. Por outro lado, num reconhecimento tácito dos seus próprios mecanismos, este flagelo envieza toda a acção individual no patético drama do Parecer, e assim voltamos ao início. Em suma, julgando avançar, rodamos infinitamente sobre nós próprios, confortavelmente instalados no seio de um pomposo colectivo de juízes-patetas.

O enterro de Saramago

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Morreu Saramago e logo toda a sorte de figuras públicas se condói e se verga perante o "génio literário" que "deixou o país órfão". Mostram-se sérios quando o fazem. Mostram-se também com pressa. Não sei se por trás deste movimento existe uma vontade consciente, mas este desfile de frases convencionais reescreve (ainda o homem não foi a enterrar) a História. Uma declaração de pesar, nesta altura, coloca o declarante ao lado do defunto escritor. Agora que morreu, Saramago já não é comunista, deixou de ser ateu e, o que é mais notável, retornou até à pátria. Tudo fica bem quando alguém morre. Em termos de respeito e consideração populares, morrer foi de longe a melhor coisa que podia ter acontecido a José Saramago.

Economia democrática

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A olho nu, a locomotiva das democracias europeias rola sobre dois carris: o do espaço económico comum, com todos os seus pretensos deveres e benefícios partilhados; e o da eleição por votação popular propriamente dito. Segundo os analistas e o pessoal político, esta composição corre o risco de descarrilar. Com o pretexto de a manter nos eixos, um pouco por todo o espaço europeu têm sido apresentados planos governamentais que se baseiam, em traços gerais, no aumento dos impostos, na redução do investimento público e no corte e/ou congelamento dos salários e demais matérias remuneratórias. Isto, que - teoricamente - é feito para manter os défices públicos (o fulcro de toda a acção governativa) dentro dos tais 3% que a certa altura ficou combinado (se bem que os 8% de défice apresentados pela França tenham uma carga completamente diferente dos 8% dos países mais petits), afigura-se-me sem embargo como a negação do substrato puramente capitalista que, pelo que nos vai sendo possível observ

1-1, nada mais natural

Muita tinta já correu a propósito do golo sofrido por Robert Green, o guardião inglês. Dele se diz que foi um "frango monumental" que "custou" à equipa inglesa a vitória na estreia da competição. Nada mais errado. A insistência em tamanha brutalidade só se pode explicar por uma ainda mais obscena ignorância das matérias filosóficas e místicas do Futebol (com F grande). Uma afirmação tão elementar é a expressão de uma pseudo-maneira de ver o jogo que urge banir: a de que há vencedores antecipados. Uma coisa é certa: muitos são os que vêem futebol, raríssimos os que o entendem. E menos ainda os que possuem a sensibilidade requerida para avaliar convenientemente a prestação dos luvas. Não assisti ao desafio entre ingleses e norte-americanos. Mas não só isso não invalida que eu desate para aqui a cagar postas de pescada, como me não impede de constatar dois factos capitais: um, que a Inglaterra dispôs de quase uma hora de jogo para marcar outro golo e garantir os três p

Chinfrins

As autoridades (as oficiais e as do mercado) muita vez as ouço em cuidados com o pouco que as gentes lêem, na medida em que isso está a montante de toda a sorte de falências formais das linguagens falada e escrita, tomem elas corpo no lamentável erro grafado ou na ordinária patacoada oralizada. Segundo o costume e o contrato com a editora, tais arrelios são tornados públicos em sessões de apresentação de prontuários ortográficos da língua camoniana - essa cabra traiçoeira -, eventos intelectuais como o caraças onde se trata de limpar o sebo a dois coelhos de uma só cajadada: não só essa gentalha ignara lê - aqueles volumes, bem entendido - como passa de imediato ao contacto com os erros que, assim, nunca chegará a cometer. Novamente. Atalha-se caminho e aligeira-se a civilização do povinho. Um brinco. Às duas por três, porém, a preocupação idónea das autoridades (das duas) enfim se desmascara em indignados trejeitozinhos de nojo e reprovação - os narizes afectados e as beiças repuxadas

E por falar nisso - já viste isto dos Descobrimentos? (1)

Por entre as brumas da avassaladora cobertura jornalística da presença da selecção nacional de futebol na África do Sul é possível vislumbrar - aqui e ali - evidências de que os chamados Descobrimentos ocupam ainda no imaginário colectivo português um lugar de orgulho e honra. Foi - vai-se dizendo (como quem relembra) - a "época áurea da História Portuguesa" - onde, presume-se, urge regressar na forma de pontapé na bola (e não tanto, como nesses saudosos idos, por meio de bordoadas no preto; mas lá iremos). Será caso para dizer que muitíssimo bem terá resultado a viril propaganda salazarista, hábil em reescrever estórias e em espartilhar o conhecimento, e além disso aparentemente sabedora dos sentimentos mais íntimos do seu rebanho - e aliás digna herdeira de cinco séculos do mais elegante racismo das Cortes imperialistas. De resto - e atalhando - a democracia trouxe mais mudanças de cosmética que de conteúdo propriamente dito. Justiça se lhe faça: nisto de manipular passados

Diário de um índio: puta que pariu as vuvuzelas

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Cada Estado tem as suas manhas para incutir nos governados um morno e artificial sentimento de pertença e coesão nacional, coisa muito porreira quando o que se pretende é fazer esquecer que as desigualdades socias estão aí vivinhas da silva e prontas para durar (a este propósito, vide entrada anterior ). Com efeito, na lógica político-partidária das democracias amodernadas, um governo terá tanto mais sucesso quanto mais profundamente conheça o fraco dos seus eleitores. No que concerne às manhas lusas, o decreto-lei do Governo da República - em melodiosa harmonia com a histórica subtileza portuguesa - ordena que se bufe numa corneta cor-de-laranja. A grei obedece, num arroubo de patriotismo cada vez mais frenético. Contra o tradicional bota-abaixismo português, a massa responde com «energia positiva». Perfeitamente alheia a todo este movimento, e assistindo a tudo muito bem instalada no camarote presidencial, uma gasolineira esfrega as mãos de contente. Mas há que dar o braço a torcer: