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Das juventudes partidárias

As juventudes dos partidos de política são como seminários contemporâneos: escolas do Poder, dos poderes; colégios do que É Preciso Para. .... - Sempre se arranja qualquer coisinha. Ideias? Que importa isso para o Sucesso, para a carreira política? As Ideias são por definição matéria provinda do orgulho e da convicção pessoal, da reflexão honesta e da independência de pensamento & sentimento. Ora, desde que o mundo é mundo que sobre estes quatro pilares se sustentaram isso sim a exclusão social e o isolamento, e nunca a popularidade ou sequer uma carreira . Temos assim que os mancebos partidarizados que recebem a profissão nas juventudes desde cedo aprendem - a mal ou a bem - que com Ideias não passam da torta cepa. Ideias, o raio que as parta, que as tenham só à flôr do pêlo, na aparência somente; isto é, simulacros de ideias . O caminho é deveras o d'aperfeiçoar esses simulacros o mais impossível. Com efeito, o recruta deve ser instruído de molde a acreditar-se , a crer na

Aconteceu-me

ACONTECEU-ME arrotar dobrado. Um suco azedo assomou-me à língua. Ainda hoje, quinze anos volvidos, trago esse travo acre cravado ao fundo da boca. Puta que pariu. Escarro incessantemente, fezado de assim me ver livre do maldito desgosto. Debalde. Puta que pariu. Dobrado, arrotar aconteceu-me. Que puta pariu. Assomou-me à língua um azedo suco. Trago cravado ainda hoje esse acre travo ao fundo da boca, volvidos anos quinze. Incessantemente escarro, fezado de me ver livre do desgosto maldito assim. Debalde. Aconteceu-me dobrado. Arrotei, puta que pariu. À língua, azedo, assomou-me um suco. Hoje ainda, puta que pariu, quinzanos volvidos, trago ao fundo da boca esse travo acre cravado. Escarro, escarro, escarro, fezado, de balde, incessante, livre, maldito. Puta que incessantemente pariu. Aconteceu-me, ainda hoje, arrotar dobrado. De balde. Incessantemente, um travo acre assoma-me ao fundo da língua. Fezado de me ver livre da boca, escarro de desgosto cravado. Puta que pariu.

Palavroso

Palavroso: transbordante de palavras, ávido de algum tipo de concretização de extensão do ser, sedento de fazer alguma coisa, de ser alguma coisa, de alguma coisa, de coisa alguma, rebento mil vezes parido, outras mil morto matado de morte macaca, projectado num futuro que me não pertence, onde meramente me projecto, onde passo e não fico como o vento passa e fica, sem consolo por me debater pelo menos tanto e tão bem quanto a mor das gentes no trapézio fideputa que emoldura a minha vã existência, questão de tempo até morrer duma vez por todas, nascido num dia de dezembro, vivendo num eterno dezembro, num perfeito dezembro, inverno até nos dias de sol, mas feliz sem embargo por ter nesta invernia uma espécie de conforto que não é fruto de um acomodar que me envergonharia perante mim sobretudo, uma espécie de conforto todavia morno e mal requentado, palavroso já sem nexo e sentido, debitar, vomitar, despejar, cagar, mijar, ejacular, verbos no infinitivo, verbos no infinito, infinito de

Portanto

Portanto, tu não estás. É estranho, porque estive este tempo todo a contar-te o meu dia, a falar-te do que fiz para ocupar a tarde, para vencer as horas da tua ausência. Falei-te de ter ido ao supermercado comprar desodorizante e de lá ter ficado mais de uma hora a ler os rótulos dos shampoo para automóveis. Falei-te de ter ido para a esplanada com um livro na mão mas que na hora e tal que lá durei mal lhe passei os olhos. Falei-te de facto disso tudo, contei-te o meu dia, porque tu existes em mim mesmo não estando. E quando estivermos juntos, se estivermos juntos, não te vou obviamente repetir tudo. E então não te vou contar nada do meu dia de hoje e de como fui miseravelmente vencido pela dor da tua ausência. Talvez me digas que não te conto nada; que não te contei, por exemplo, como foi o meu dia de hoje, e aí vou estranhar, porque isso não corresponde à verdade, porque te conto tudo, porque te falo todos os dias dos meus dias e hoje, posso jurar-to, não foi excepção, e talvez até m

A folha em branco II

7 A folha em branco é um prédio alto aonde podes subir sempre que te quiseres matar. A folha em branco não serve, como os prédios altos, para chamares a atenção. Na folha em branco, matas-te; não chamas a atenção de ninguém. Não sobes; desces. Na folha em branco, não há lugar para qualquer tipo de fingimento ou compaixão. Não se aglomerará uma multidão aos teus pés, d'olhos colados em ti como um canavial de pássaros ociosos. Não acudirá o corpo de bombeiros, num estrépito de sirenes e buzinas, com uma rede de salvação, prestável & moralista. Não virá nenhum familiar choroso, amigo do peito ou sequer um reles psicólogo para perto de ti, com falinhas mansas, dizer-te que a Vida vale a pena, que ainda há gente que gosta de ti e se preocupa contigo, que o suicídio não condiz com a tua personalidade forte e decidida, que tens tanto para viver! Nada. Na folha em branco encontrarás somente um imenso vale branco, duma brancura de leite, que encandeia, que se entranha, se cola à tua p

A folha em branco I

1 A folha em branco não autoriza silêncio. Obriga-te a que a anules, preenchendo-a. A folha em branco rouba-te o direito à ausência que tu ainda crês que te assiste. És tu próprio quem se coloca perante a folha em branco. Sim: és tu próprio que te privas de um silêncio que desejas. 2 A folha em branco não existe. A folha em branco é uma invenção tua. É uma abstracção a que, na composição estrangeira da palavra «branco», dás corpo, e onde buscas uma existência paralela, talvez agradável, talvez diferente. Nela te recrias, tu que não existes, tu que te anulas no preencher do teu dia-a-dia. A folha em branco é o teu último reduto. A folha em branco és tu. 3 A folha em branco é uma escarpa sobre o oceano. Para lá do recorte duro da rocha, a Morte, a imensa tranquilidade da Morte. O brilho metálico da Lua sobre o mar, que enfeitiça, a nortada fria, que corta, o impacto monumental das vagas aos pés da ravina. Achas que te falo da Morte? Vejo-te estacado no rebordo precário do abismo. Como po

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Titula o jornal q «2 dos 3 casos suspeitos em portugal não se confirmam» ca proverbial ligeireza ca não-inscrição autoriza & em larga medida alimenta. A sazonal reciclagem de surtos epidémico-virulentos, a par da repescagem dalgum dos muitos signais do "international terrorism", são duas dentre as mais-que-muitas ferramentas esgalhadas pra manter as gentes num estado d'alerta e-cono-micame-nte rentável. A própria Estabilidade Social ganha com esta merda, pá. Semelhantes notícias marcam o ritmo da dança cus nossos corpos inermes seguem irresistivelmente. Os aparelhos de tele-visão embalam-nos o espírito numa sincronização maquievélica e não há não há como negar o convite: é uma mão displicente e pálida - duma displicência e palidez sensuais - q se nos estende ao cabo de um jantar bem regado a vinho, simultaneamente desejo e imposição, e quando damos por ela nem nos passou pla cabeça uma (1) cousa tã' simples cumo: Parar Pra Pensar. Não nos é autorizado parar. Não d

Foi quando li a tua mensagem

Foi quando li a tua mensagem que decidi matar-te. Respondi-te Está combinado, amigo. Registei mentalmente a hora e o sítio que propuseste, sítio e hora em que te iria matar. Pensei Mas não vai estar ninguém conhecido para presenciar a cena e é estúpido esperar que um estranho compreenda o que te vou fazer. Ter uma testemunha era para mim imprescindível. Melhor seria convidar alguém que nos conhecesse aos dois. Sugeri então fazer-me acompanhar pela minha prima sabendo que não recusarias, ela que foi sempre do teu agrado. Lembro-me quando a viste pela primeira vez, numa ocasião em que os meus tios nos vieram visitar. Brincámos a tarde toda, com aquela certeza juvenil que o tempo não passa. No dia seguinte a eles tornarem à terra, só falavas nela. E, quando te disse que o meu tio tinha conseguido trabalho cá e que eles se iam mudar para o bairro, não contiveste a alegria. De facto, pensei, ela é a testemunha ideal. Combinei com ela, tal sítio tantas horas. De seguida, a convite do silênc

Vazio

Já abri o bloco, empunho já a esferográfica, deparo-me com a folha branca em branco, arrisco as primeiras palavras, as primeiras frases, a folha branca deixa progressivamente de estar em branco, é agora um manto de leite com irregulares traços a preto, já a folha tem a metade de cima gasta e ainda eu não sei o que fazer com ela, ainda eu não sei senão que todos os meus nervos e músculos, todos os meus impulsos cerebrais, tudo à uma me impele para escrever, escrever que ao fim e ao cabo não é senão isto, deixar palavras e letras gravadas a tinta, indiferentes ou quase, resistentes ou quase ao correr dos dias, amanhã ou para o ano posso aqui voltar, a esta folha branca que num dado momento deixou de estar em branco, a esta folha branca que aguardava este realizar, este ser que é o do papel, esta concretização de ser riscada, voltar aqui, dizia, a esta folha e, ao fazê-lo, voltar aqui, a esta esplanada fria, a esta manhã inquieta, a esta terça-feira de um junho a dar os seus primeiros pas

Normalidade (notas sobre)

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Despediu-se o primeiro-ministro e ninguém se ralou grandemente. Tudo o que vai acontecendo é normal e a normalidade não é coisa que deva preocupar uma pessoa. Os acontecimentos normais também não dão azo a pasmos. Despediu-se o primeiro-ministro e não houve quem se surpreendesse genuinamente. Normal é tudo o que acontece de facto. Não há assunto ou sucesso que, tendo acontecido, não deva desse momento em diante ser visto senão como normal. Se aconteceu, é normal - e eis tudo. Conheci um homem que dizia um monte de vezes que normal é cada um usar o cabelo com que nasceu. Esse homem repetia isto com frequência e a propósito de toda a sorte de situações. Era a sua máxima. Era normal ele dizer que normal é cada um usar o cabelo com que nasceu e, como tal, nenhuma das pessoas dos seus relacionamentos se ralava, espantava, ou sequer ligava quando ele o repetia. É quando uma pessoa cessa de se ralar ou espantar com as coisas que acontecem que essas mesmas coisas que acontecem se tornam comple

O meu amigo diz-me que...

2 O meu amigo diz-me que um trabalhador feliz produz mais. E que importa isso? Um trabalhador infeliz consome mais, e eis o que importa. Uma pessoa infeliz tem mais necessidades, e de todas as ordens, e, por força de se ver cercada de infelizes incapazes de lhe suprirem emocional e praticamente as carências, vinga-se na mercadoria, na tralha, no hi-tech - onde aliás se revê, com que, em larga medida, se identifica. Neste ponto, o infeliz não encontra felicidade senão na mercadoria. O contacto interpessoal só lhe é aprazível numa dialética de consumidor-vendedor. O aumento da produção não é, como nos querem fazer crer, questão premente para as economias das nações amodernadas. O consumo, esse sim, o consumo é fulcral, é crítico. Ora bem, temos que, economicamente falando, urge promover um desenvolvimento sustentado da Infelicidade. É manter a rota, portanto. "Tudo a sudoeste!", como rugia aquele bem-aventurado capitão que não hesitou em deixar para trás um marinheiro caído ao

Hoje ouvi a tua voz

Hoje ouvi a tua voz. Foi quando fui às furnas olhar o oceano. Soube logo que eras tu. . O oceano era, como o céu, uma massa parda e opaca. O céu estava muito baixo e carregado. As vagas buliam violentamente nas rochas numa dança ensurdecedora. Sabes como é, mal dá para conversar com alguém. E chovia a bom chover. O vento soprava de sudoeste e trazia a chuva tocada. Um temporal, enfim. Por cá tem estado assim, já de há umas duas semanas para cá. E então ouvi a tua voz. Soube logo que eras tu. Ouvi-te perfeitamente, limpidamente, apesar da tormenta. Quanto te ouvi, porém, não te procurei com o olhar. Ouvi-te, mas não mirei em redor a ver se te via. Ouvi-te e não me mexi. Permaneci imóvel, a dar a cara ao mar negro e revolto. Se alguém ali estivesse por perto e me observasse nesse momento não seria capaz de dizer que eu tinha ouvido a tua voz, porque não se aperceberia da leve contracção do meu maxilar, porque não daria importância à ruga que então me sulcou a testa. E porque, de todo o m

Patriotismo

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Os últimos meses trouxeram muitas Palavras & Frases novas para que as pessoas tenham o que dizer quando falam-umas-com-as-outras. Trata-se assim de se dar às pessoas uma opinião. Não é portanto de estranhar que mais tarde se criem toda a sorte de oportunidades para que as pessoas, votando, a devolvam à procedência. Tanto quanto é possível observar, esta organização deixa toda a gente bastante satisfeita. No caso vertente, as pessoas viram-se aviadas de Palavras como «rating» ou «P.E.C.» [péque]; e frases como «entrada do F.M.I. [éfe-émi] no país». Foi-lhes dito igualmente como e quando as utilizar. Regra geral, as pessoas mostram-se muito ordeiras e respeitadoras e repetem tudo muito direitinho. A isto se dá o nome de "patriotismo".

Telegrama 047

047 Ter políticos profissionais - desses que nem na juventude tiveram outro Ideal que não o de integrar os quadros do Partido - espalhados um pouco por todo o lado (desde logo, nos píncaros da Decisão; depois, no chamado «comentário político»; finalmente, ao leme das maiores empresas a operar em Portugal, sejam elas privadas ou públicas) dá nisto: o seu discurso público faz sentido.

"Um país à rasca"

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Já a noite (e um aguaceiro forte) caíra quando, à saída do Starbucks dos Restauradores, me cruzei com três rapazes que desciam rumo ao Rossio. Um deles trazia um altifalante junto aos beiços e entoava: "Nós só queremos Marlboro a vinte cêntimos, Marlboro a vinte cêntimos, Marlboro a vinte cêntimos". Achei-lhes muita graça. Uns minutos antes, o meu irmão tinha-me enviado uma mensagem de texto a dar-me conta que a manifestação era encabeçada por dois indivíduos de extrema-direita e que, inclusivamente, um deles trazia uma t-shirt com o Hitler estampado. Baseava-se certamente no que vira pela televisão ou pela internet, uma vez que me escrevia desde Mafra. Respondi-lhe que isso devia ser apenas um instantâneo televisivo e que, olhada do miolo, a manifestação não tinha cabeça. Com efeito, lá do meio, a manifestação pareceu-me muito espontânea. Não tenho fé nas pessoas e não sou apologista deste tipo de protesto. No entanto, devo dizer que, nas mais de duas horas que levei a perco