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Gareth Bale

Só uma parte do valor de transacção de um dado capital traduz o seu real valor no momento em que essa mesma transacção ocorre. Dos 100 milhões de euros que, aparentemente, o maior clube de futebol da capital espanhola está disposto a destinar para garantir os préstimos de Gareth Bale, só uma parte está vinculada ao seu verdadeiro valor. Uma grande fatia desses disparatados 100 milhões fica a dever-se, entre outras variantes, a pura especulação económica e a um certo vício de espectacularidade mediática que de há uns anos a esta parte tomou os gabinetes da direcção daquele emblema. Prosaicamente, Bale não justifica tamanho investimento. Neste ponto, é-me até quase inexplicável como raio é que se chegou a este número ridículo de 100 000 000. Desde logo, pergunto-me o que motivará um jogador cujo trajecto num determinado clube seja tão concretamente positivo a desejar uma transferência. O que é que o move? Dir-me-ão, não sem uma certa sobranceria perante tão ingénua dúvida, que é o din

Alagoou-se o meu umbigo

Foi numa dessas tardes feitas de sal e sol. Perante meus olhos incrédulos, meu umbigo inventou-se lago. Casa só dum impossível botão, olho vazado de ciclope, enormizou-se de salgado lago de liliputianos. As nuvens negras de meus cabelos choveram as águas capturadas no mergulho que dera, do mergulho que dera vindas eram as águas que as negras nuvens dos cabelos meus descativaram e fizeram correr pelo vale terroso do peito, aqui e além detidas pelos afloramentos protuberantes dos mamilos, transbordantes ainda pelos grandes desfiladeiros dos flancos, confluentes finalmente no vaso nu do umbigo, pedaço d'água rodeado de terra por todos os lados. Um lago, indesmentível e duma vastidão plana e preguiçosa como só os lagos sabem ter, ali mesmo, no orifício que trago na barriga. . Mas logo o sol desinventou todos esses arroios e ribeiros. Desinventou até o lago, despromoveu-o a umbigo. Resistaram somente, impressos a sal na argila de meu tronco, seus indecifráveis e precários rastos, p

Manifesto

Na ressaca dos últimos desacontecimentos politológicos e partidográficos, eis que mil gargantas militarmente ensaiadas nos dizem a uma só multipla voz o que devemos pensar, o que devemos fazer, o que devemos dizer, tantas aparentadamente antagónicas, todas filhadaputamente autoritárias, legítimas, idóneas, paternais, todas como fossem ao fim e ao cabo apenas duas afiladas e requintadas presas de cobra de mato que nos envenenam os sangues, entravam os músculos, embebedam o discernimento. Assistimos à demissão de gaspar, à saída de portas, à declaração de coelho, à reacção de seguro, ouvimos os comentários dos comentadores, as análises dos analistas, as políticas dos politólogos, as falas dos faladores de profissão, e de tudo isso emana um coerente e orquestrado fedor a merda. Um fedor que nos deixa exaustos. Um fedor nunca velho, nunca novo. Um fedor que traz em fundo uma gargalhada, gargalhada essa que promete assombrar-nos para sempre. Este Grande Espectáculo da Realidade é verte

Da greve dos professores ao exame de Português dos 12.º anos (em parceria - não tão 'estreita' quanto eu desejaria - com a Rita)

Quando a opinião publicada, muito afoitada às roufenhas declarações dos sindicalistas profissionais, trata de propagar a ideia de que o ME deveria ter adiado o exame de Português dos décimos-segundos anos, então quaisquer hipóteses de tirar de debaixo dos escombros alguma lógica ainda com vida ficam boamente postas de lado. Mário Nogueira, cara da FENPROF e braço da Resistência do Bigode luso, desgraçadamente em agonia nos nossos escanhoados dias, defendia a requintada tese de que os acontecimentos de ontem, nomeadamente a apresentação por parte da tutela de uma nova data para os milhares de alunos que ficaram sem realizar o exame, eram prova de como estava ao alcance do ME desde logo remarcá-lo e, assim, "evitar a confusão nas escolas". A ideia é a tal ponto absurda, de tal maneira um contra-senso, que uma palavra me preenchia a mente à medida que os microfones da rádio me faziam chegar a voz do sindicalista: perversidade. E, note-se, em doses cavalares. . Mais difusamen

É perigoso, este sol

Foi enquanto ajeitava a rocha da cadeira da praia ao espaldar do invólucro de pele da espinha. O sol faíscava grosso no canto superior esquerdo da moldura do dia e eu sentia a carne salgada da face a querer encarquilhar. Foi enquanto me ajeitava para ler e me sabia encarquilhado de cara. O som indistinto que há largos minutos se encaracolava no pesado resfolegar da praia ganhou nitidez da mesma forma que ganham nitidez os contornos ásperos dos cactos dos canteiros do quintal da casa da minha mãe através da objectiva minuciosa da minha máquina fotográfica e então distingui a frase - Este sol é perigoso. Uma mulher e um homem mais novos, outra mulher e outro homem mais velhos e uma bebé desacasalada. A mulher mais nova e o par de velhos eram os vértices bicudos dum triângulo isósceles apontado à bebé, que lhes guinchava nos solavancos da areia as ordens torrenciais que, com a potência surda de uma mão biblíca, comandavam a cruzeta da marioneta de cada um. Donde me encontrava, por pouc
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José tem dois euros e qualquer coisa no bolso. Traz da véspera um plano. De manhã, bem cedo, passo na praça a comprar fruta. Acordara orgulhoso da sua resolução. A ver se começo a comer mais frutinha, diz para consigo num alento matinal vigoroso, à medida que percorre as ruas de luz e calor da sua imaginação até ao seu café predilecto. Sentado, já com a bica a fumegar à sua frente, mira distraidamente a montra dos bolos. Vacila. De súbito, José fica suspenso numa imagem, numa memória: o apelo torturante de todas as montras de bolos de todas as pastelarias que cruzara desde que saíra de casa e que agora o seu subconsciente, sem misericórdia, derrama sobre os seus sentidos de forma irresistivelmente palpável. José hesita um momento mais. Não, não posso, senão tenho de ir levantar dinheiro para a fruta e esses 10€ voam-me que é um instante e como isto está não pode ser. As ruas da sua imaginação são violentamente tomadas por uma bruma espessa e gélida. A bica deixa-lhe um travo amargo no
Rejeito a guerra. É empresa necessariamente temporária e não faz sentido construir algo senão para que dure para sempre. Falam-me de um homem que morreu no dia 23 de setembro de 1938, às quatro horas da madrugada, vésperas da Segunda Guerra Mundial. Morreu após um longo coma, os últimos anos a talhar chagas sangrentas nas nádegas à força do atrito com a maca, seu exosqueleto, sua segunda coluna vertebral (a válida), onde jazia imóvel e inútil desde 1917, mercê de um obus demasiado pesado e demasiado inevitável. “Com ideias como as tuas, para que lutaste?”, perguntaram-lhe, certa vez. E ele respondeu: “Para que seja a última guerra.” E foi. O preço a pagar aceitou-o no dia em que ouviu, através da janela, os gritos dos que sobreviveram. “Viva a Paz!” Para sempre. Negou a guerra. Negou-lhe a substância. Construiu, sobre ela, algo eterno. Morreu a tempo de morrer em paz consigo.