O supérfluo. A culpa

Estabeleceu-se uma relação perfeita e absoluta de causa-consequência em torno de dois termos: «movimentação humana» & «novos infectados com coronavírus». A relação é de tal maneira perfeita e absoluta que, no discurso publicado, um e outro termos se confundem. São sinónimos.

Associa-se-lhes uma sequência directa, tão intuitiva e natural que dispensa, dir-se-ia, explicações: +movimentação humana = +novos infectados com coronavírus = +internamentos hospitalares = +mortos. Esta é a sequência-base que determina, com o peso do unanimismo a que dá corpo, que os movimentos humanos (todos) devem, porque devem, ser reduzidos a qualquer custo.

Todos. A qualquer custo.

A ordem, difundida a martelo, é linear e não autoriza desvios: os seres humanos devem imobilizar-se.

Claro que isto não é realista. "A vida não pode parar", ouve-se.

Introduz-se, então, mais uma orientação de fundo: como não se pode parar tudo, pára-se o que não é essencialo que é supérfluo.

Como é que se define o que é e o que não é supérfluo? Nada mais simples. Sob o império de um pragmatismo de nação moderna, os termos definidos são, sem surpresa, os seguintes: tudo o que não for Trabalho & Escola e Bens Essenciais é supérfluo.

A espiral Casa-Trabalho-Casa (ou Casa-Escola-Casa, o que vem a ser o mesmo), pilar da Ordem das Coisas, cristaliza-se.

E cristaliza-se num clima de censura aberta - patriótica, mesmo - a todos quantos tenham a imoralidade de a (tentar) quebrar. Ai daquele que pretenda (estamos já ao nível dos desejos; a censura das acções ficou lá atrás, nalguma vaga anterior) ir caminhar no jardim ou junto ao mar. Esses impulsos de lesa-pátria são hoje, graças a Deus, mortos à nascença: #morteaosdesconfinadinhos.

Sem surpresa, os livros ficaram na categoria dos bens e serviços supérfluos.

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Quatro dias depois de decretar um novo confinamento geral, António Costa voltou a falar ao país para "endurecer as restrições", como reza a gíria jornalística. Nessa comunicação, o Primeiro-Ministro verbalizou uma noção que subjaz a virtualmente todo o discurso político e mediático produzido desde Março do ano passado: as novas infecções são maioritariamente, senão exclusivamente, produto da negligência individual.

"Quem se deixa infectar" - fixei esta expressão.

De facto, parece que vivemos numa circunstância histórica organizada em torno de duas directrizes-chave:

1. é preciso fazer alguma coisa

2. é preciso culpar alguém

Escusado será dizer que este discurso é particularmente perverso. Nunca se avançou, até aqui, para a culpabilização do Doente, mesmo quando é evidente que foi o comportamento individual, que podia e talvez devia ter sido outro, a estar na origem do problema - casos do tabagismo, dos acidentes de viação por velocidade excessiva ou consumo de álcool, dalguns tipos de obesidade. Em nenhum destes três exemplos, todos eles associados a grandes índices de mortalidade, todos eles onerosos, todos eles muito exigentes no que toca aos recursos hospitalares que absorvem, todos eles com uma dimensão social e pública muito fortes - em nenhum deles se sugere ou se ensaia uma culpabilização, uma cobrança, uma moralização política e mediática.

E isso é que está correcto, porque estes comportamentos estão a jusante de um quadro complexíssimo de factores sociais, políticos, psíquicos, ambientais, materiais, etc., etc., que inviabilizam - analítica e moralmente, pelo menos - uma culpabilização linear do sujeito. 

Porquê então fazê-lo em relação a este novo coronavírus?

(...)

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