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♜ O marido veio dar com ela a cismar sobre os tachos do almoço. - Olha que isso está a querer levantar fervura. Arrancada ao seu alheamento, a boa esposa atarantou-se e deixou cair a colher de pau ao chão. Dobrou-se ela mesma para a apanhar e fungou duas vezes sem dizer palavra. - Que é que tu tens, mulher? Isso está a pontos de deitar por fora. Ela baixou o lume às batatas e, enquanto limpava as mãos ao avental, atirou-lhe: - Tens de ir marcar o do primeiro-esquerdo. O marido teve um sobressalto. Sentou-se lentamente e esteve um momento em silêncio a barrar a manteiga no pão. Ruminava. Finalmente, murmurou: - O do primeiro-esquerdo? - O do primeiro-esquerdo. O homem equilibrou cuidadosamente a faca sobre o pacote da manteiga e ali deixou o olhar pousado enquanto digeria aquela informação. Acabou por dizer, como quem pensa alto: - Achamos sempre que estas coisas só acontecem aos outros. A mulher deixou bruscamente o fogão e sentou-se à frente dele. - Já vis

Entrada de diário

Um mês passado sobre o início do desconfinamento, pergunto-me: como é que vamos sair disto? Quem, enquanto comunidade, depois de tudo isto, seremos? Que nova feição assumirá a nossa sociedade? Quando, nos idos de Março, as coisas se precipitaram no sentido do fecho-de-tudo, ninguém pensou no pós-confinamento. A esta distância, dir-se-ia mesmo: ninguém pensou, ponto final. Este «ninguém» implica, desde logo, os responsáveis políticos. Mas, mais vivas, vêm-me ao pensamento todas as pessoas. Todas as pessoas, isto é, todos nós. Dir-me-ão - E que é que poderíamos então ter pensado que agora fizesse alguma diferença? Nada, claro. E, no entanto, a decisão política teve claramente, inequivocamente, uma origem popular. Houve, como talvez nunca tenha havido antes, uma pressão pública para que medidas drásticas fossem tomadas. Muito mais do que os chamados responsáveis políticos, interessam-me os responsáveis anónimos. O ímpeto de fazer-o-que-for-preciso para combater um problema de saúde
♞ Dois cidadãos trajados em tons pardos dialogam com gravidade numa esquina do grande terreiro da vila. Têm os olhares postos numas grandes árvores que há do outro lado da estrada. - Aquele. - O da mesa da ponta, de t-shirt amarela? - Esse. Um deles tira um maço de tabaco do bolso interior do casaco. Servem-se cada um de um cigarro e põem-se a fumar. Fazem-no com uma pachorra calculada. Parecem olhar o monumento aos mortos em combate. - Eu não te disse? - Tens razão. Tem mesmo cara de assintomático. - Eu disse-te. Demoram-se nas últimas baforadas. Deitam as pontas ao chão, pisam-nas demoradamente. Fazem-se um levíssimo aceno e começam a caminhar na direcção da esplanada. Dirigem-se à mesa da ponta e interpelam um tipo de t-shirt amarela absorto na leitura de um livro usado. - Importa-se de nos acompanhar? Olham-no do alto, com insistência. O tipo da t-shirt parece não compreender. Após um instante de silêncio, repetem: - Importa-se de nos acompanhar? O tipo