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Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Estava decidido a escrever um texto com o título «Enquanto as ervilhas cozem». Tinha acabado de preparar o tupperware com o pequeno-almoço de amanhã, antes aquecera já o jantar do F., pusera na máquina-da-loiça as caixas da comida de hoje, dera volta à areia do gato, despejara no lixo um resto de bacalhau com broa precocemente azedado. (Ainda bem que não tinha feito – não fizera – mais nada antes, já não suportava mais um pretérito mais-que-perfeito.) Sentia-me capaz de uma dessas filosofias quotidianas que, sob a concretude dos gestos banais, descobre um substrato profundo e inspirador e belo.  Enquanto as ervilhas cozem…  Começaria assim, para situar o texto num plano paralelo ao das coisas comuns e daí elevá-lo, a princípio com candura, depois com rasgo, aos éteres da Poesia e da Arte. Começaria assim –  Enquanto as ervilhas cozem  – para sugerir uma imagem, um som de fundo, para que das palavras se desprendesse um travo de dia-a-dia que o Leitor logo identificasse, com que logo se

Figas

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Parece que estamos a passar pela sexta vaga. Francamente, achava que já tinham sido mais. Mas é o que dizem e, em última análise, o que nos dizem é tudo o que temos. A vida não é senão o fogo-cruzado entre a narrativa que alguém nos conta, a percepção que a partir daí calha elaborarmos e, nos intervalos entre uma coisa e outra, a especulação em que nos gastamos. Portanto, se é a sexta vaga é a sexta vaga. Aliás, há até uma certa sincronização cósmica - porque é tempo também do sexto pacote de sanções à Rússia. Este acaso numérico só pode ser bom augúrio. Há, sem embargo, sinais contraditórios. De um lado, brada-se que Portugal "continua a vermelho", que os casos "são quase 45 vezes superiores" que há um ano, que a linhagem (?) BA.5 "já é dominante". De outro, que "o pico já terá passado" e que, portanto, o Governo não vai "endurecer medidas". Em que é que ficamos? Seja como for, não podemos passar sem notar que «endurecer medidas» é uma

Caem as máscaras

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Não me espantaria que os telejornais do jantar desta sexta-feira chuvosa e fria e escura tivessem incluído nunca menos que um segmento de imagens onde pontuassem hordas de "jovens" em apinhada folia nocturna em que nove em cada dez - porque era esse o assunto da peça - se exibissem despidos de máscara. Imagino, do lado de cá do ecrã, uma massa de bons cristãos assistindo arrepiados, benzendo-se perante tal espectáculo, murmurando, entredentes, num misto de assombro e raiva, - Mas a pandemia ainda não acabou, repetindo-o mesmo - Mas a pandemia ainda não acabou, - Mas a pandemia ainda não acabou, - Mas a pandemia ainda não acabou, só não sabemos se o repetiriam em voz audível, se no segredo dos seus pensamentos, como não sabemos se o diriam por mera constatação de uma realidade relativamente objectiva, se por um inconfessável desejo - Que a pandemia não acabe, - Que a pandemia não acabe, quiçá expresso, aliás, num discurso directo donde transpirasse a familiaridade de dois anos

A pandemia e a guerra nos canais de notícias 24-7. O trágico recuo da Empatia

Depois de dois anos inteiros de pandemia, três semanas inteiras de guerra. Esta interrompeu aquela, tomou-lhe o lugar de protagonista dos nossos quotidianos. A troca foi súbita e como que total: onde uma dominava, domina agora a outra; o espaço que uma, sozinha, preenchia, a outra o preenche agora, quase em exclusividade. Parece clara a correlação entre o silenciamento mediático da crise pandémica e o actual estardalhaço da guerra. Talvez não tivesse havido ainda uma suspensão tão duradoura e sobretudo tão efectiva da agenda pandémica enquanto facto diário como esta que a cobertura do conflito russo-ucraniano trouxe. Trata-se, nem seria preciso dizê-lo, de dois fenómenos perfeitamente distintos na sua substância. E, no entanto, no que toca ao discurso e à sua feição mediática, ficam na retina alguns paralelismos importantes.   O «agora» como valor absoluto Aquilo a que se chama a «informação televisiva» conheceu, com o advento e proliferação recentes dos canais especializados,

Inverno pandémico

- Oh, olá, nem te reconhecia! - Pois é, com isto das máscaras nem nos conhecemos. - Viste os números de hoje? Uns três mil setecentos e tal, não é brincadeira nenhuma. - Está a piorar imenso, sim. Mas as pessoas abusam, essa é que é a verdade... - Pois, pois é... - ...é discotecas, é jantares... - ...agem tipo «não se passa nada»... - ...não viste ontem no telejornal? - ...e não tarda está tudo fechado outra vez. - É ajuntamentos em tudo quanto é sítio. - Ai, enfim, a ver vamos que Natal temos. - Sim, a ver vamos. Estamos nas vésperas de um retrocesso àqueles dias de chumbo do pico da histeria pandémica. É um sentimento que ganha espessura, que se insinua e que, como uma gosma, se cola à pele. É, como o são as coisas gosmentas, nojento. Os signais aí estão para quem os queira valorizar: num encore mórbido, espécie de improviso ensaiado (porque aparentemente espontâneo, porque inequivocamente pré-programado), a co-presença voltou a ser, puramente, sinónimo de per

Eu devia era ter apanhado desta omicron

Eu devia era ter apanhado desta omicron. A S. disse isto, sem tirar nem pôr: eu devia era ter apanhado desta omicron. Eu de início nem percebi. Mas, passado um bocado, aquilo caiu-me: mas como assim, devia era ter apanhado desta? Perguntei-lhe mesmo: mas olha lá, que conversa é essa do ‘devia era ter apanhado desta’? Eu nem queria acreditar. Ao que ela se vira pra mim e me diz: então, apanhei da outra e agora ‘tou sujeita a apanhar desta, e diz que esta é muito mais leve. E eu: mas tu passastes mal co’a outra, por acaso? Mas nisto entrou uma cliente e a conversa ficou-se por ali. Mas ‘tás a ver como as pessoas são? Porque ela andou o tempo todo roídinha de não ficar em teletrabalho, porque “toda a gente está menos nós” e renhonhó e renhonhó, e ela fartinha de saber que nós nunca poderíamos ir para teletrabalho, mas mesmo assim andou nisto este tempo todo. E tanto andou que acabou por apanhar e ficar uns dias em casa. Ela quando voltou ainda ‘tive vai-não-vai para lhe dizer que ela devi

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados

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Foi noticiado, há cerca de uma semana, a trágica morte de uma criança de seis anos num hospital em Lisboa. A RTP titulou: "Morreu uma criança de 6 anos com teste positivo à covid-19" . Tanto quanto sei, e mau grado algumas notícias sobre a investigação levada a cabo pela PGR, não se apurou, até hoje, a causa da morte. E, no entanto, logo ficou nota de que este menino entrou na soma de óbitos da pandemia do novo coronavírus: a "quarta morte" na faixa etária dos 0-9 anos. Olhando ao boletim de ponto de situação da DGS desse dia , não é possível confirmar que foi essa a contabilização feita - a escala do gráfico da segunda página inviabiliza essa leitura. Mas, se bem me lembro, o critério de mortalidade em vigor durante o período de pandemia que Graça Freitas foi descrevendo logo nas primeiras semanas da crise pandémica era, em síntese, este mesmo: todos os óbitos com diagnóstico de infecção por SaRS-CoV-2 são registados como óbitos COVID-19. Dizia a notícia que "