Inverno pandémico
- Oh, olá, nem te reconhecia!
- Pois é, com isto das máscaras nem nos conhecemos.
- Viste os números de hoje? Uns três mil setecentos e tal,
não é brincadeira nenhuma.
- Está a piorar imenso, sim. Mas as pessoas abusam, essa é
que é a verdade...
- Pois, pois é...
- ...é discotecas, é jantares...
- ...agem tipo «não se passa nada»...
- ...não viste ontem no telejornal?
- ...e não tarda está tudo fechado outra vez.
- É ajuntamentos em tudo quanto é sítio.
- Ai, enfim, a ver vamos que Natal temos.
- Sim, a ver vamos.
Estamos nas vésperas de um retrocesso àqueles dias de chumbo
do pico da histeria pandémica. É um sentimento que ganha espessura, que se
insinua e que, como uma gosma, se cola à pele. É, como o são as coisas
gosmentas, nojento. Os signais aí estão para quem os queira valorizar: num
encore mórbido, espécie de improviso ensaiado (porque aparentemente espontâneo,
porque inequivocamente pré-programado), a co-presença voltou a ser, puramente, sinónimo
de perigo.
Pior: um perigo eivado, tingido, manchado de irresponsabilidade.
É confuso, mas é assim. A partilha de um espaço-tempo é, por
defeito, neste horizonte pragmático, um perigo irresponsável: o perigo
de ser infectado, ou de infectar, sabe-se lá, e irresponsável, porque não
se trata de, ponderada e racionalmente, evitar certo tipo de interacções com
outros seres-humanos (as que apresentam maior probabilidade de contágio);
trata-se, isso sim, de evitar, tout court, seres-humanos – algo que, está bom
de ver, é sempre, em todas as circunstâncias, sem excepções, uma hipótese.
Por conseguinte, logicamente se conclui que: quem não evita seres-humanos
é porque não quer.
E, se não quer, há um só motivo: é irresponsável.
A mirada desconfiada para o lado, a hipertrofia performativa das “medidas”, os comentários afectados, des-inocentes, em voz alta. Difunde-se, em reedições sucessivas, uma culpa: a culpa de viver.
«Viver», no caso
vertente, é o oposto perfeito, os antípodas, o negativo, da directiva
#fiqueemcasa, a qual é, por sua vez, sinédoque e síntese duma nova ordem mundial
qualquer que todos se apressam a desmentir.
Pandemia de «positivos», os novos casos sobem. Viste os
números de hoje?
Encavalitados na narrativa mediática, que precisa do alarme
social como pão para a boca, os tais novos casos novos tornam-se moeda corrente
da relação social mais elementar, da acção pública mais inócua e banal. Viste
os números de hoje? Uns três mil setecentos e tal, não é brincadeira nenhuma.
Assim o determina a performatividade formal da pandemia –
que parece ter lançado raízes fundas e se assemelha já, tantas vezes, a memória
muscular.
Assim o determina a relação primária e primitivamente
supersticiosa com o bicho – diz-se assim, “o bicho”, para nomear o novo
coronavírus.
Assim o determina o novel código social, já só muito vagamente
assemelhado àquelas recomendações sanitárias dos idos de Março do ano passado –
lembram-se? – que lhe estiveram na origem. O que perdura é apenas uma
degeneração estéril, como uma mula.
As pessoas abusam, essa é que é a verdade. A
transferência cega da responsabilidade para a massa anónima d’as pessoas
pelo comportamento de um vírus respiratório é, quer-me parecer, a pedra angular
desta construção metapandémica.
A natureza, a gravidade e a própria escala da doença
justificam tamanhas restrições cívicas e sociais? O impacto brutal de todas estas
restrições, desde logo na Saúde, mas também no Ensino, na relação com o Outro, na
Economia, tem sido devidamente ponderado?
Invariavelmente, estas questões legítimas e necessárias e silenciadas desembocam, no espaço mediático, nos super-convenientes «negacionistas», esse vago e triste bando de tristes que toma todo o espaço (e já é quase nenhum) do questionamento.
Sem «negacionismo», a gestão da pandemia teria sido muito mais problemática.
* texto de 24/11/2021