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A mostrar mensagens de março, 2012

O burro e o cigano

1 Atou o cigano à sebe o burro. Aceita o burro o baraço à sebe. Compreende o burro o procedimento: ele que não quer fugir, ele que não quer estar preso. Aproxima-se o filho do cigano da sebe. Fastia-se o filho do cigano do nada do sítio. Pegou a chibata do burro do pai da carroça. Chibatou o lombo do burro do fastio do nada do sítio. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outravezou o ciganito a chibatada ao lombo do burro. 2 Foge o burro do desfastio do filho do cigano. Berra o ciganito o burro! o burro! o burro! Persegue o cigano o burro. Apanha o cigano o burro. Ata o cigano à sebe o burro. Castiga o cigano à chibatada o lombo do burro da intentona. Outra vez. Outra vez. Outra vez. O burro. Ao Rui, que me contou esta estória.

Crónica futebolística

O meu clube venceu a meia-final. O outro clube ficou-se de meio-finalista vencido. O árbitro não fez amigos novos, mau grado tanto hand-shake antes e depois da partida. A bola foi pisada, chutada, socada, cabeceada. A bola foi malapatada. A relva rasgou-se em torrões de areia. Jogadores houve que se amachucaram, em número de três, encaminhados para a linha lateral para darem a vez a outros que os aguardavam ansiosos. Dos que se avariaram, um, da formação rival, mostrou-se deveras contrariado. Urrou com as artérias do pescoço enfunadas e esmurrou o relvado num salpico de areia, todo o tempo envolto numa mudez bidimensional de ecrã de televisão. Outro escavacou-se na bacia e quedou-se como destroço no chão, mas ninguém se mostrou impressionado, tanto mais que os poucos que se foram achegando ao desgraçado o fizeram no exclusivo intuito de esticar o braço ao saco do massagista, donde não paravam de brotar garrafas de água. Saiu o desembaciado já anónimo, escondido por repetições de chuto

La crisis: resegna estórica

Um grande bando de grandes fideputas peculatou o tesoiro da mátria em acto da mais reles banditagem. Cenário de banca rota: o oiro caiu muito plo buraco. Os cujos inda se afadigaram a disfarçar o roto do seu carácter com remendigagens várias, das costumeiras às exóticas, das estrangeiras às patrióticas. Pois merda. O mal estava feito e, benza-os deus, muito bem feito. Competência para a incompetência. Procedeu-se então, em sede de co-omissão para lamentar, à industriosa descrição do mui surpreendente! rombo do casco do baú da nau do inacional tesooiro, seus quandos, porquês & entãos. Heroicamente, cabalmente, sinteticamente, diagnosticou-se o mal de que afinal padeciam as finanças públicas: contágio interintencional, vírus daquém e dalém-mare, coisa muito globalizada e pós-moderna e, sobre o mais, inevitável, pelo que, remataram os dinheirologistas, toca-a-todos e porttugale não é excepção. Entrelinhamente, inocentava-se destarte o grande bando de grandes fideputas de responsabili

Do cair de mota

Gosto de voltar atrás, à manhã de sexta passada, e pensar que cheguei a pegar nas luvas quando ia a sair de casa. Quando, porém, as senti ainda ligeiramente húmidas por dentro, decidi pendurá-las com uma mola no estendal da varanda. Ignorava então que, daí a uns meros vinte minutos, o dorso da minha mão direita conheceria a aspereza das mandíbulas de alcatrão da rotunda na Rua do Funchal, à saída de Loures. Bem entendido, de que me teria valido essa previdência? É bem verdade que teria evitado esta ferida chata que me traz a mão tingida de betadine; mas imagino por outro lado a angústia em que me teria lançado a ideia de que dali a momentos iria cair de mota. Antes assim. Viver é esta inconsciência, é este desconhecimento objectivo, esta ignorância visceral de que, para o tanto que é morrermos, nos basta o nada que é estarmos vivos. . Não me lembro de entrar na rotunda. Muito vagamente, recordo-me de reparar que havia novamente água da rega no asfalto. Lembro-me ainda da imagem indefin

Nós de nós III

Duro num contexto que é cada vez mais menos meu. Nele duro, só. Só, nele duro. Neste pretexto me endureço: desfazendo-me em pedra me faço. Emparedo-me em torre desajanelada: torre chã cheia só de tectos sós por todos os lados. Muros, muralhas, acendalhas de murros. Nós de nós. Mas o tempo. Espero-o. Espero-lhe a passagem pelos dentros de mim, pelos meios dos nós de nós. Tempo mole em muro duro tanto tempa até que. Há pó, se formos mobília. Há embaço, se formos espelho. Há discórdia, se formos amor. O caralho. Fazer amor. Efectuar amor. Executar amor. Fabricar amor. Amar. Asar. Arar. Atar. Aturar. Autorizar. Autuar. Aterrorizar. Assar. Amassar. Amarrar. Amuar. Amuralhar. Arruar. Arrotear. Arrotar. Arrostar. Arcar. Armar. Amar. “Eu só queria Amor, Amor e mais nada.” Tatuaste-me um dicionário inteiro nas costas do peito. E com ele agora que faço? Com ele e agora que faço? Que faço agora com ele e?

André

Usam comigo um olhar estranho as pessoas. Como quem pergunta. André. Olhar de ponto de interrogação e reticências. Poisam o seu olhar estranho nos meus olhos e depois vagueiam em volta, pela cara do resto. Não me intrigou a primeira pessoa que isso comigo usou. Mas os parezinhos de olhos foram se sucedendo. Mil pares de vozes impossíveis, todas à uma. André. E finalmente fiquei intrigado eu. Pensei Tenho de chegar a um espelho. Chamei o elevador. Um um tomou o lugar de um dois e um zero vermelho respondeu-me ao apelo com um som sem cor. Apartaram-se as portas com irreprensível geometria. Do meio delas assalta-me novo par de olhos. André. Subo ao piso número dois. Desbloqueio a porta dos vestiários e faço-me entrar. Adiante, à mão esquerda, uma fileira de espelhos, meia dúzia deles, seis sábias bocas a esclarecer-me prontas, saiba eu ouvi-las. Num súbito impulso, porém, giro à direita direito a uma porta branca com trinco. Trincada. Levanto o tampo e acomodo-me a adiar uns minutos mais