Do cair de mota

Gosto de voltar atrás, à manhã de sexta passada, e pensar que cheguei a pegar nas luvas quando ia a sair de casa. Quando, porém, as senti ainda ligeiramente húmidas por dentro, decidi pendurá-las com uma mola no estendal da varanda. Ignorava então que, daí a uns meros vinte minutos, o dorso da minha mão direita conheceria a aspereza das mandíbulas de alcatrão da rotunda na Rua do Funchal, à saída de Loures. Bem entendido, de que me teria valido essa previdência? É bem verdade que teria evitado esta ferida chata que me traz a mão tingida de betadine; mas imagino por outro lado a angústia em que me teria lançado a ideia de que dali a momentos iria cair de mota. Antes assim.
Viver é esta inconsciência, é este desconhecimento objectivo, esta ignorância visceral de que, para o tanto que é morrermos, nos basta o nada que é estarmos vivos.

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Não me lembro de entrar na rotunda. Muito vagamente, recordo-me de reparar que havia novamente água da rega no asfalto. Lembro-me ainda da imagem indefinida de uma mulher que contornava a rotunda pelo passeio que a delimita. Na minha memória, essa mulher é um borrão a castanho-claro. Eu seguia veloz, sem carros a entupirem as faixas de rodagem, o sol brilhava forte nas minhas costas; quando, de súbito, a um puxão da roda dianteira, a linha do horizonte virou exactos 90º à esquerda, ficou perpendicular à linha dos meus olhos, e esta brusca viragem deu-se num inesperado vácuo sonoro, o qual findou no preciso momento em que o meu ombro esquerdo conheceu a macieza do asfalto e o meu corpo foi ruidosamente lançado duma rampa ao encontro do lancil do passeio onde um borrão castanho-claro já agitava os braços em generoso pedido de ajuda. Neste meio-tempo, só tenho certeza plena de ter pensado uma coisa: foda-se. Um foda-se de frustração pura. Dali a nada, já sentado no passeio com o que me pareceu uma pequena multidão em volta, repeti este foda-se um sem número de vezes, que ganhava novo ímpeto de cada vez que, por cima do ombro, dava uma mirada à mota estupidamente danificada.
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Os bombeiros fecharam-me na ambulância. Sentaram-me num banquinho logo junto à porta e um deles começou a desinfectar-me as feridas. Lá fora ficavam dois simpáticos senhores que até à chegada da carrinha do INEM me observaram com os queixos colados à minha cara e me disseram várias vezes que podia ter batido com a cabeça no passeio e que isso era pior. Foi um deles que telefonou aos bombeiros. Agradeci-lhes antes de entrar na ambulância. Não consegui dizer obrigado à mulher que é um borrão castanho-claro. Às tantas, o bombeiro tratava-me por tu e contava-me para que hospitais normalmente levavam as pessoas. Senti que aquela simpatia era profissional, tão profissional e terapêutica quanto haviam sido os seus gestos rápidos a desinfectar-me as feridas momentos antes. Quando me sentaram numa cadeira de rodas, à entrada das urgências do Santa Maria, pensei que é bem verdade que há ainda muita gente boa neste mundo. Senti-me estranhamente calmo e grato. Diria até que me senti feliz por ter caído de mota.

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