Algo de errado se passa.

Algo de errado se passa. (O quê, em rigor – de tanta coisa – nem sei bem. Mas) Digo-o com toda a sinceridade e determinação, com um arrufado sentimento de missão à mistura, como se dependesse unicamente de mim, num fardo hercúleo sobre os meus inexperientes ombros, todo o futuro da nação portuguesa: algo de errado se passa!
Tenho que denunciar este crime hediondo. Tenho que trazer luz a esta sombria hecatombe, repetidamente dissimulada sob os focos de Suas Senhorias os estúdios televisivos, sob as tribunas de Suas Sumidades os nossos representantes, sob as indecentes camadas de pó-de-arroz de Suas Excelências as nossas vedetas!
Ou muito me engano, ou todo este meu apreciável esforço já vem fora de tempo. Ou muito me engano, ou já nos encontramos afundados por completo no peganhento lamaçal da nossa corrupta e bafienta sociedade. Ou muito me engano, ou já é tarde de mais!
Oh! e a virulenta censura a que serei sujeito e a perseguição mortal em que me verei protagonista, e o ataque rancoroso que me dirigirão esses obscuros mas omnipresentes falcões sanguinários dos poderes instalados?
Contra o tempo e contra as conveniências estabelecidas labutarei, sem embargo. Contra os que mais têm e os que mais podem. De encontro, inclusive, ao meu próprio bem-estar. Em prol da verdade, da justiça e do povo. É a cruz que orgulhosamente carrego. É o meu triste, porém honrado, fado!
(...)
Agora que concluí o meu trabalho, agora que fiz história, agora que desmascarei todos os abutres, posso afirmar, com reforçada valentia, com obstinada vitalidade, com revigorada pujança: algo de errado se passou.
Passou. E, como um comboio que salta uma estação onde deveria parar, como um avião que dispensou uma escala prevista numa qualquer cidade, como um navio que não largou âncora num porto onde o esperava uma multidão, passou e ninguém deu por nada. Ninguém.
Não se pense, porém, que este ninguém tem carácter quantitativo. Não, senhor. É ninguém qualitativo, como seria dizer, por exemplo, Ninguém de direito ou, outro exemplo, Ninguém que tenha meios para fazer o que quer que seja ou, ainda um exemplo mais, Ninguém que consiga impedir que tudo fique tal e qual estava.
Assim, é coisa meramente de tempo verbal. Dizer passa ou dizer passou vai dar ao mesmo. O mal está aí, está cá, entranhado, enraizado, não há maneira de o extrair, não há esperança, enfim.
Algo de errado, então, se passa.

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