Reencontro

Ontem peguei novamente num Sherlock Holmes. A princípio hesitante, pensando que a leitura daquele título já não me iria cativar, rapidamente me reencontrei com o velho Watson, com o imperturbável Holmes, com o acolhedor 202 de Baker Street e, psicologias à parte, comigo mesmo – ou, pelo menos, com uma parte de mim mesmo. Em rigor, não sei bem qual; e talvez isso pouco importe. O sentimento foi, com efeito, de reencontro – e isso chega-me.
Aqueles que foram os contos que verdadeiramente me iniciaram no imenso prazer de ler não têm para mim qualquer segredo. Li-os de lés a lés, e muitas vezes (mesmo muitas). Sem surpresa, assim que comecei a ler, a páginas duzentas e vinte e oito, um tal caso chamado “A Escola do Priorado” (que escolhi ao acaso), lembrei-me quase imediatamente de toda a acção da história e dos seus protagonistas. E, simultaneamente, lembrei-me de quando a li pela primeira vez. Recordo-me bem que me apetrechava de uma bela fatia de bolo de noz ou de biscoitos de canela e de uma caneca de leite com café bem quente de cada vez que ia para a cama ler, porque os aposentos austeros do detective e os relatos emocionantes do médico convidavam a essas ceias nocturnas. E quando eram as noites de chuva, melhor ainda. De facto, a narrativa transportava-me para aquela já babélica Londres e para a companhia daqueles dois gentlemen destemidos e, cada um à sua maneira, leais à amizade que os unia. Desta feita, a narrativa transportou-me para aquele vão de escada onde escolhi colocar a minha cama, para aquele quarto de paredes brancas onde coleccionava em tiras de fita-cola as mariposas mais distraídas. O sentimento foi, ora bem, de nostalgia.
Quanto à crítica implícita e explícita à lendária Scotland Yard, quanto à descrição desassombrada do consumo de ópio, quanto às inverosímeis capacidades de observação e reconhecimento do detective - tudo isso sempre me passou ao lado.
Depois de Conan Doyle, muitos outros vieram (no meu percurso enquanto leitor, claro está). Rex Stout, Edgar Wallace e Agatha Christie, sobretudo. A Sherlock Holmes juntaram-se, portanto, Nero Wolfe, John G. Reeder e Hercule Poirot (entre outros). Mas sempre os vi, autores e personagens, como meros sucessores ou seguidores do estilo de Sir Arthur e da mente de Holmes. Na verdade, ainda os vejo desse modo.
(curiosamente, sempre visualizei o Sherlock Holmes com a cara do Salazar. Com a cara do Salazar e o corpo do Cavaco. E assim sobrancelhudo como o Cunhal.)
Enfim, ontem, ao revisitar o mais famoso detective de todos quantos povoaram a literatura europeia e norte-americana dos últimos 150 anos, revisitei-me. Revisitei aquele rapaz que já tinha deixado de ser. Revisitei-me. E recuperei um pouco daquilo que nunca deixei de ser.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados