Fragmentos IV

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A maioria absolutista, apresentada amiúde como fenómeno de estabilidade e legitimidade duma governação democrática, indiferentemente dos seus resultados práticos, é só mais um caso, rapaz. Vejamos, por instantes, o caso do «não» irlandês: enfim, não fez, com efeito, História, daquela d´H grande, mas, porventura até por isso, importa sobremaneira destacá-la: é que a opinião publicada foi desfavorável, de-cla-ra-da-men-te desfavorável. O rumor que se fez ouvir foi de impaciência pla impertinência da coisa, plo imbróglio criado, "após anos de, sic, defíceis e complexas negociações". Agora, de quando em vez, lá algum Lobo manda uma acha para a fogueira onde nos querem queimar, e alguns há que lhe passam Cavaco. Talvez que isso seja, em certa medida, um reforço do que te venho dizendo. Certo dia li que a democracia, presente hoje, futuro à época, se encruzilharia inapelavelmente nas questiúnculas partidárias e seus interesses mesquinhentos, e que, em virtude disso, o interesse nacional seria ignorado e subalternizado. Isto, à luz dos hojes, afigura-se-me difícil de negar. De todo o modo, rapaz, sempre os dias morrem e renascem, ou assim no-lo querem fazer pensar os nossos olhos, sempre o sol reaparece ao fim das horas de bréu, sempre a esperança nos ilude com o seu reaparecimento, sempre olhamos a avenida reflectida na vidraça borralhada com os olhos brilhantes de ingenuidade e fé dum infante. Muitas vezes me pergunto se não será esse, afinal, o nosso fado. As guitarras desde há décadas que nos vêm chorando. Mas este silêncio em que fomos emboscados é um desespero. E a desesperação agoniza tanto mais que ninguém nos tapa a boca. Ninguém nos tapa a boca, han. E, sem embargo, aqui nos tens, calados, quedos, emudecidos, sendo que para a oralidade se aplicará concerteza uma destrinça em tudo semelhante àquela que à visão se pode aplicar, que uma coisa é olhar e que outra, múnto distinta, é ver. Reservaram-nos, tudo indica, o proporcional do olhar. Na receita, misturaram ainda outro ingrediente, que muito nos dirá além daquilo que à primeira vista é claro, basta que o queiramos ouvir. O outro ingrediente é, pincelando a metáfora, o espartilho. O espartilho entra no negócio enquanto critério, enquanto mérito e enquanto, finalmente, bitola máxima. E talvez como máxima, também. O espartilho, na sua vertente estética, na sua vertente de superficialidade, na sua vertente de ódio-próprio ou de consciência do ôco íntimo, na sua natureza falseadora, é assim que ele se junta ao caldo. Lá está, tínhamos aqui pano para mangas, mas, por ora, fiquemo-nos por aqui, que agora escurece mais cedo e eu ainda tenho muito passeio pra dobrar. Pagas as cervejas? Obrigado, rapaz. Esqueci-me da carteira em casa, só por isso.
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