Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem
Estava decidido a escrever um texto
com o título «Enquanto as ervilhas cozem». Tinha acabado de preparar o
tupperware com o pequeno-almoço de amanhã, antes aquecera já o jantar do F.,
pusera na máquina-da-loiça as caixas da comida de hoje, dera volta à areia do
gato, despejara no lixo um resto de bacalhau com broa precocemente azedado.
(Ainda bem que não tinha feito – não fizera – mais nada antes, já não suportava
mais um pretérito mais-que-perfeito.) Sentia-me capaz de uma dessas filosofias
quotidianas que, sob a concretude dos gestos banais, descobre um substrato
profundo e inspirador e belo. Enquanto as ervilhas cozem… Começaria
assim, para situar o texto num plano paralelo ao das coisas comuns e daí
elevá-lo, a princípio com candura, depois com rasgo, aos éteres da Poesia e da
Arte. Começaria assim – Enquanto as ervilhas cozem – para
sugerir uma imagem, um som de fundo, para que das palavras se desprendesse um
travo de dia-a-dia que o Leitor logo identificasse, com que logo se
identificasse. Enfim, estava decidido, ia começar, aguardava-me a Eternidade.
Tinha as ervilhas de facto ao lume (tenho, apesar de tudo, os meus escrúpulos),
restava-me tão-só abrir a tampa do portátil e abraçar o Porvir, a Glória, tudo.
Mas assomaste à porta da cozinha – tive tempo apenas de vislumbrar uma mão no
umbral, o teu rosto bom a destacar-se da penumbra do corredor, uma paciência
infinita na voz:
– Bem, as ervilhas são dois
minutos, isso já está, é melhor escorreres.
Foi o que fiz.
Atrás de mim, sobre a mesa, entre a
cesta da fruta e a conta da água, na sua inércia imbecil de
máquina, o portátil fechado. Texto abortado, as ervilhas estavam cozidas.
Devia falar-se mais acerca destes desencontros entre um homem e o seu Destino.