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Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Estava decidido a escrever um texto com o título «Enquanto as ervilhas cozem». Tinha acabado de preparar o tupperware com o pequeno-almoço de amanhã, antes aquecera já o jantar do F., pusera na máquina-da-loiça as caixas da comida de hoje, dera volta à areia do gato, despejara no lixo um resto de bacalhau com broa precocemente azedado. (Ainda bem que não tinha feito – não fizera – mais nada antes, já não suportava mais um pretérito mais-que-perfeito.) Sentia-me capaz de uma dessas filosofias quotidianas que, sob a concretude dos gestos banais, descobre um substrato profundo e inspirador e belo.  Enquanto as ervilhas cozem…  Começaria assim, para situar o texto num plano paralelo ao das coisas comuns e daí elevá-lo, a princípio com candura, depois com rasgo, aos éteres da Poesia e da Arte. Começaria assim –  Enquanto as ervilhas cozem  – para sugerir uma imagem, um som de fundo, para que das palavras se desprendesse um travo de dia-a-dia que o Leitor logo identif...

Irrompem os carrilhões

Irrompem os carrilhões. Assim – “irrompem”. Sem aviso. Como uma torrente rasgando este silêncio morno de Domingo à tarde. Uma onomatopeia vinha talvez a calhar, mas nunca – Vuu-uhh-uum – foram bem a minha praia. A sala do carrilhonista fica (acho eu) na base da torre Sul, à direita de quem encara a fachada principal do Convento. O conjunto da torre Norte é – não me lembra bem o porquê, mas sei que já ouvi contar – tosco, abrutalhado, e não permite os mesmos virtuosismos melódicos. Dará, quando muito, para chamar à missa ou tocar os finados – em alta grita. Seja como for, o homem lá está, neste instante, naquele alto ermo, rodeado de toquinhos de madeira e de ferro, onde zurze com afinco (Abel; estou que se chama Abel, o carrilhonista-mor; não me recorda já o apelido), presos a grandes cabos que sobem às alturas semi-divinas dos mil sinos e sininhos joaninos (diz que cada um tem um nome; há-de certamente ser pela proximidade à pia baptismal, pela relação próxima com os ministros do Senh...
♜ O marido veio dar com ela a cismar sobre os tachos do almoço. - Olha que isso está a querer levantar fervura. Arrancada ao seu alheamento, a boa esposa atarantou-se e deixou cair a colher de pau ao chão. Dobrou-se ela mesma para a apanhar e fungou duas vezes sem dizer palavra. - Que é que tu tens, mulher? Isso está a pontos de deitar por fora. Ela baixou o lume às batatas e, enquanto limpava as mãos ao avental, atirou-lhe: - Tens de ir marcar o do primeiro-esquerdo. O marido teve um sobressalto. Sentou-se lentamente e esteve um momento em silêncio a barrar a manteiga no pão. Ruminava. Finalmente, murmurou: - O do primeiro-esquerdo? - O do primeiro-esquerdo. O homem equilibrou cuidadosamente a faca sobre o pacote da manteiga e ali deixou o olhar pousado enquanto digeria aquela informação. Acabou por dizer, como quem pensa alto: - Achamos sempre que estas coisas só acontecem aos outros. A mulher deixou bruscamente o fogão e sentou-se à frente dele. - Já vis...
♞ Dois cidadãos trajados em tons pardos dialogam com gravidade numa esquina do grande terreiro da vila. Têm os olhares postos numas grandes árvores que há do outro lado da estrada. - Aquele. - O da mesa da ponta, de t-shirt amarela? - Esse. Um deles tira um maço de tabaco do bolso interior do casaco. Servem-se cada um de um cigarro e põem-se a fumar. Fazem-no com uma pachorra calculada. Parecem olhar o monumento aos mortos em combate. - Eu não te disse? - Tens razão. Tem mesmo cara de assintomático. - Eu disse-te. Demoram-se nas últimas baforadas. Deitam as pontas ao chão, pisam-nas demoradamente. Fazem-se um levíssimo aceno e começam a caminhar na direcção da esplanada. Dirigem-se à mesa da ponta e interpelam um tipo de t-shirt amarela absorto na leitura de um livro usado. - Importa-se de nos acompanhar? Olham-no do alto, com insistência. O tipo da t-shirt parece não compreender. Após um instante de silêncio, repetem: - Importa-se de nos acompanhar? O tipo ...

Eu aqui

Nunca deixo de pensar sobre como me olharão estas pessoas que aqui passam na rua, sob a minha varanda. Aqui estou, neste pequeno alto, lendo, tomando placidamente um café ou um vinho do Porto, mirando a serra ou a nesga de mar que daqui se alcança, espreitando a rua (nisso pondo o ar mais alheado que consigo) com um gato mole e sadio ao lado, para mais de um tigrado laranja que tem o seu quê de exótico – aqui estou, jovem quanto baste, despreocupado, com tempo de sobra, de calções e t-shirt em dia de trabalho, a pele das pernas e dos braços já amorenada – aqui estou, sentado a uma mesa de jardim, numa imobilidade contrastante com aquela tensão nervosa própria de quem vai ou está a trabalhar, numa quietude vagabunda tão inversa àquela impetuosidade direccionada de quem sabe quando e para onde tem de ir – aqui estou, habitante deste prédio de aspecto sólido e confortável, gozando dos luxos de viver onde tantos apenas passam por motivos de trabalho, onde a vida não é – porque não pode ser...

Silêncio

- Está mal o nosso país mandava, para dar o mote. Aguardaria. Certamente alguém iria reagir. Certamente concordante. Certamente iria ter mais uma hipótese de observar aquele balançar de cabeça em anuência, aquele olhar sabido, de sobrolho afectado, aquele esgar instantâneo, já repetido, representativo da impotência perante a inegável realidade. Proclamaria ainda - Isto tem que dar uma grande volta . Uma pequena mudança das expressões verificar-se-ia, certamente: o aceno de cabeça seria mais pronunciado, as pálpebras ficariam levemente cerradas, as pestanas bem puxadas em arco para o meio da testa enrugada, a boca ainda emudecida de lábios quase inexpressivos, sem os cantos arrebitados. Não me quedaria por ali, insistente, e acrescentaria - Que há a fazer? Certamente, iria poder observar o ar a ser expelido por entre os dentes e os lábios, as cabeças a bambolearem um pouco para trás e para um dos lados em movimento semi-circular, os olhos a ganharem aquele brilho de gozo em ...

Pensamentos matinais

Um casal que aqui passou vindo da esquina. Vinham de mão dada, ela na dianteira. Ele dava para o gordito e era careca, desses carecas só de cocuruto e franja, a toda a volta do crânio uns fiapos de cabelo ainda visíveis, ralos e translúcidos, enfim, uma negação de qualquer ordem. Ela era discretamente agradável, tinha umas feições regulares e umas cores, do cabelo, dos olhos, da pele, sadias. Denotava brio na toilette, os tecidos ricos e largos em tons de terra todos aprumados em negligências calculadas. Mas ei-los que saem já do café, as mãos ainda dadas, despacharam a bica enquanto, sentado na esplanada, lhes refazia a imagem de memória, e ela continua na frente, ele vem meio-braço atrás, à laia de atrelado. Ela leva o queixo lançado, dá passos decididos, trá-lo, objectivamente, pela mão. Enquanto eles se afastam, dou por mim a pensar que ela está com ele porque se sente mais bonita ao lado de um homem que não o é. E vou imaginando-a crescendo sem compreender a falta de reconhecime...
Imagem
Entra tosco e aos apalpões, de órbitas enormes e salientes, os olhos fixados num ponto qualquer que não faz sentido. No medo do choque, o crânio calvo segue num plano recuado ao do tronco, traz a coluna a prumo, o chapéu-de-chuva vai tocando aqui e ali a medir distâncias e a sentir arestas. As pernas movem-se com rigidez. O rosto, esse, é bonacheirão, de nariz grande e redondo, faces escanhoadas, testa longa. Os lábios finos, de homem, como pedindo condescendência e apoio, desenham um sorriso quase perene, que só desfaz quando, sentado, já com o café e pastel-de-nata que a menina do balcão, reconhecendo-o de todos os outros dias, lhe vem, contra as regras da casa, deixar à mesa, se sente desacompanhado, fora de cena. Tento imaginar como será sair de casa praticamente cego. Começo por me lavar, por me vestir. Estarei sozinho? Estará alguém comigo, nessa tão chata e tão profunda intimidade? Ou estará a casa a meu exclusivo e especifíssimo jeito, toda organizada e arrumada para q...

Alagoou-se o meu umbigo

Foi numa dessas tardes feitas de sal e sol. Perante meus olhos incrédulos, meu umbigo inventou-se lago. Casa só dum impossível botão, olho vazado de ciclope, enormizou-se de salgado lago de liliputianos. As nuvens negras de meus cabelos choveram as águas capturadas no mergulho que dera, do mergulho que dera vindas eram as águas que as negras nuvens dos cabelos meus descativaram e fizeram correr pelo vale terroso do peito, aqui e além detidas pelos afloramentos protuberantes dos mamilos, transbordantes ainda pelos grandes desfiladeiros dos flancos, confluentes finalmente no vaso nu do umbigo, pedaço d'água rodeado de terra por todos os lados. Um lago, indesmentível e duma vastidão plana e preguiçosa como só os lagos sabem ter, ali mesmo, no orifício que trago na barriga. . Mas logo o sol desinventou todos esses arroios e ribeiros. Desinventou até o lago, despromoveu-o a umbigo. Resistaram somente, impres...

É perigoso, este sol

Foi enquanto ajeitava a rocha da cadeira da praia ao espaldar do invólucro de pele da espinha. O sol faíscava grosso no canto superior esquerdo da moldura do dia e eu sentia a carne salgada da face a querer encarquilhar. Foi enquanto me ajeitava para ler e me sabia encarquilhado de cara. O som indistinto que há largos minutos se encaracolava no pesado resfolegar da praia ganhou nitidez da mesma forma que ganham nitidez os contornos ásperos dos cactos dos canteiros do quintal da casa da minha mãe através da objectiva minuciosa da minha máquina fotográfica e então distingui a frase - Este sol é perigoso. Uma mulher e um homem mais novos, outra mulher e outro homem mais velhos e uma bebé desacasalada. A mulher mais nova e o par de velhos eram os vértices bicudos dum triângulo isósceles apontado à bebé, que lhes guinchava nos solavancos da areia as ordens torrenciais que, com a potência surda de uma mão biblíca, comandavam a cruzeta da marioneta de cada um. Donde me encontrava, por pouc...

A beleza muda do gostar

Quando aqui chegaram aqueles dois o sol esquentava estas mesas e estas cadeiras debaixo deste telheiro de madeira que prolonga esplanadamente o telhado deste café onde sempre se ouve atirada da rádio música de duas pequenas colunas dependuradas acima da vista e onde, como em regra acontece nos assuntos vários da vida, nem todas as cadeiras e mesas são fornecidas da mesma fortuna, no caso o conchego morno e luminoso deste astro magnífico que pouco se importa se é já outubro entrado ou se os palradores de cá de baixo lhe destinam expressões tão atrozes quanto sol fora de época. Nem todos os assentos estavam banhados pelo calor solar e foi por isso que estes dois não se sentaram cada qual em seu lugar assim que chegaram, antes ficaram de pé diante da mesa escolhida a travarem-se de razões em empurrões de mãos e trejeitos de beiços mimosos e praticamente ridículos, estava a cadeira do lado de dentro na sombra e a da ponta ao sol, aquela num vão escuro e f...

Quarta-feira

Subo já daqui directo a algum sítio. Qualquer. Para que, vendo-me por fora, fiquemos a pensar que sei para onde caralho vou, para onde caralho quero ir. Não parar. Não abrandar. Como tivesse ond’ir. E horas. Uma finalidade. Mesmo que mentirosa. . Minha caligrafia não é minha, mas de minhas mãos. Minhas mãos não são minhas, mas de meus braços. Meus braços não são meus, mas de meu tronco. Meu tronco não é meu, mas de meu corpo. Meu corpo não é meu, mas dos outros. . A matéria disposta como pretensa denúnica, o estilo urbanizado, populoso, como jorro de porcas  & parafusos, um escrever palavroso, adolescente. Começa assim. Depois muda. Muda o conteúdo, o outfit, o layout, a maquilhagem. Caem as coisas complicadas; prevalecem as simples. Como o amor ou a felicidade. Não há aqui espaço à ironia. A ironia não ocupa espaço, como se diz do saber. A ironia é o espaço, a sala-de-estar, o cosmos, o útero. A ironia é tudo e então não lhe reservo espaço: onde já se ...

O burro e o cigano

1 Atou o cigano à sebe o burro. Aceita o burro o baraço à sebe. Compreende o burro o procedimento: ele que não quer fugir, ele que não quer estar preso. Aproxima-se o filho do cigano da sebe. Fastia-se o filho do cigano do nada do sítio. Pegou a chibata do burro do pai da carroça. Chibatou o lombo do burro do fastio do nada do sítio. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outravezou o ciganito a chibatada ao lombo do burro. 2 Foge o burro do desfastio do filho do cigano. Berra o ciganito o burro! o burro! o burro! Persegue o cigano o burro. Apanha o cigano o burro. Ata o cigano à sebe o burro. Castiga o cigano à chibatada o lombo do burro da intentona. Outra vez. Outra vez. Outra vez. O burro. Ao Rui, que me contou esta estória.

Crónica futebolística

O meu clube venceu a meia-final. O outro clube ficou-se de meio-finalista vencido. O árbitro não fez amigos novos, mau grado tanto hand-shake antes e depois da partida. A bola foi pisada, chutada, socada, cabeceada. A bola foi malapatada. A relva rasgou-se em torrões de areia. Jogadores houve que se amachucaram, em número de três, encaminhados para a linha lateral para darem a vez a outros que os aguardavam ansiosos. Dos que se avariaram, um, da formação rival, mostrou-se deveras contrariado. Urrou com as artérias do pescoço enfunadas e esmurrou o relvado num salpico de areia, todo o tempo envolto numa mudez bidimensional de ecrã de televisão. Outro escavacou-se na bacia e quedou-se como destroço no chão, mas ninguém se mostrou impressionado, tanto mais que os poucos que se foram achegando ao desgraçado o fizeram no exclusivo intuito de esticar o braço ao saco do massagista, donde não paravam de brotar garrafas de água. Saiu o desembaciado já anónimo, escondido por repetições de chuto...

La crisis: resegna estórica

Um grande bando de grandes fideputas peculatou o tesoiro da mátria em acto da mais reles banditagem. Cenário de banca rota: o oiro caiu muito plo buraco. Os cujos inda se afadigaram a disfarçar o roto do seu carácter com remendigagens várias, das costumeiras às exóticas, das estrangeiras às patrióticas. Pois merda. O mal estava feito e, benza-os deus, muito bem feito. Competência para a incompetência. Procedeu-se então, em sede de co-omissão para lamentar, à industriosa descrição do mui surpreendente! rombo do casco do baú da nau do inacional tesooiro, seus quandos, porquês & entãos. Heroicamente, cabalmente, sinteticamente, diagnosticou-se o mal de que afinal padeciam as finanças públicas: contágio interintencional, vírus daquém e dalém-mare, coisa muito globalizada e pós-moderna e, sobre o mais, inevitável, pelo que, remataram os dinheirologistas, toca-a-todos e porttugale não é excepção. Entrelinhamente, inocentava-se destarte o grande bando de grandes fideputas de responsabili...

Nós de nós III

Duro num contexto que é cada vez mais menos meu. Nele duro, só. Só, nele duro. Neste pretexto me endureço: desfazendo-me em pedra me faço. Emparedo-me em torre desajanelada: torre chã cheia só de tectos sós por todos os lados. Muros, muralhas, acendalhas de murros. Nós de nós. Mas o tempo. Espero-o. Espero-lhe a passagem pelos dentros de mim, pelos meios dos nós de nós. Tempo mole em muro duro tanto tempa até que. Há pó, se formos mobília. Há embaço, se formos espelho. Há discórdia, se formos amor. O caralho. Fazer amor. Efectuar amor. Executar amor. Fabricar amor. Amar. Asar. Arar. Atar. Aturar. Autorizar. Autuar. Aterrorizar. Assar. Amassar. Amarrar. Amuar. Amuralhar. Arruar. Arrotear. Arrotar. Arrostar. Arcar. Armar. Amar. “Eu só queria Amor, Amor e mais nada.” Tatuaste-me um dicionário inteiro nas costas do peito. E com ele agora que faço? Com ele e agora que faço? Que faço agora com ele e?

André

Usam comigo um olhar estranho as pessoas. Como quem pergunta. André. Olhar de ponto de interrogação e reticências. Poisam o seu olhar estranho nos meus olhos e depois vagueiam em volta, pela cara do resto. Não me intrigou a primeira pessoa que isso comigo usou. Mas os parezinhos de olhos foram se sucedendo. Mil pares de vozes impossíveis, todas à uma. André. E finalmente fiquei intrigado eu. Pensei Tenho de chegar a um espelho. Chamei o elevador. Um um tomou o lugar de um dois e um zero vermelho respondeu-me ao apelo com um som sem cor. Apartaram-se as portas com irreprensível geometria. Do meio delas assalta-me novo par de olhos. André. Subo ao piso número dois. Desbloqueio a porta dos vestiários e faço-me entrar. Adiante, à mão esquerda, uma fileira de espelhos, meia dúzia deles, seis sábias bocas a esclarecer-me prontas, saiba eu ouvi-las. Num súbito impulso, porém, giro à direita direito a uma porta branca com trinco. Trincada. Levanto o tampo e acomodo-me a adiar uns minutos mais ...

Aconteceu-me

ACONTECEU-ME arrotar dobrado. Um suco azedo assomou-me à língua. Ainda hoje, quinze anos volvidos, trago esse travo acre cravado ao fundo da boca. Puta que pariu. Escarro incessantemente, fezado de assim me ver livre do maldito desgosto. Debalde. Puta que pariu. Dobrado, arrotar aconteceu-me. Que puta pariu. Assomou-me à língua um azedo suco. Trago cravado ainda hoje esse acre travo ao fundo da boca, volvidos anos quinze. Incessantemente escarro, fezado de me ver livre do desgosto maldito assim. Debalde. Aconteceu-me dobrado. Arrotei, puta que pariu. À língua, azedo, assomou-me um suco. Hoje ainda, puta que pariu, quinzanos volvidos, trago ao fundo da boca esse travo acre cravado. Escarro, escarro, escarro, fezado, de balde, incessante, livre, maldito. Puta que incessantemente pariu. Aconteceu-me, ainda hoje, arrotar dobrado. De balde. Incessantemente, um travo acre assoma-me ao fundo da língua. Fezado de me ver livre da boca, escarro de desgosto cravado. Puta que pariu.

A folha em branco II

7 A folha em branco é um prédio alto aonde podes subir sempre que te quiseres matar. A folha em branco não serve, como os prédios altos, para chamares a atenção. Na folha em branco, matas-te; não chamas a atenção de ninguém. Não sobes; desces. Na folha em branco, não há lugar para qualquer tipo de fingimento ou compaixão. Não se aglomerará uma multidão aos teus pés, d'olhos colados em ti como um canavial de pássaros ociosos. Não acudirá o corpo de bombeiros, num estrépito de sirenes e buzinas, com uma rede de salvação, prestável & moralista. Não virá nenhum familiar choroso, amigo do peito ou sequer um reles psicólogo para perto de ti, com falinhas mansas, dizer-te que a Vida vale a pena, que ainda há gente que gosta de ti e se preocupa contigo, que o suicídio não condiz com a tua personalidade forte e decidida, que tens tanto para viver! Nada. Na folha em branco encontrarás somente um imenso vale branco, duma brancura de leite, que encandeia, que se entranha, se cola à tua p...

A folha em branco I

1 A folha em branco não autoriza silêncio. Obriga-te a que a anules, preenchendo-a. A folha em branco rouba-te o direito à ausência que tu ainda crês que te assiste. És tu próprio quem se coloca perante a folha em branco. Sim: és tu próprio que te privas de um silêncio que desejas. 2 A folha em branco não existe. A folha em branco é uma invenção tua. É uma abstracção a que, na composição estrangeira da palavra «branco», dás corpo, e onde buscas uma existência paralela, talvez agradável, talvez diferente. Nela te recrias, tu que não existes, tu que te anulas no preencher do teu dia-a-dia. A folha em branco é o teu último reduto. A folha em branco és tu. 3 A folha em branco é uma escarpa sobre o oceano. Para lá do recorte duro da rocha, a Morte, a imensa tranquilidade da Morte. O brilho metálico da Lua sobre o mar, que enfeitiça, a nortada fria, que corta, o impacto monumental das vagas aos pés da ravina. Achas que te falo da Morte? Vejo-te estacado no rebordo precário do abismo. Como po...