Alagoou-se o meu umbigo

Foi numa dessas tardes feitas de sal e sol. Perante meus olhos incrédulos, meu umbigo inventou-se lago. Casa só dum impossível botão, olho vazado de ciclope, enormizou-se de salgado lago de liliputianos. As nuvens negras de meus cabelos choveram as águas capturadas no mergulho que dera, do mergulho que dera vindas eram as águas que as negras nuvens dos cabelos meus descativaram e fizeram correr pelo vale terroso do peito, aqui e além detidas pelos afloramentos protuberantes dos mamilos, transbordantes ainda pelos grandes desfiladeiros dos flancos, confluentes finalmente no vaso nu do umbigo, pedaço d'água rodeado de terra por todos os lados. Um lago, indesmentível e duma vastidão plana e preguiçosa como só os lagos sabem ter, ali mesmo, no orifício que trago na barriga.
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Mas logo o sol desinventou todos esses arroios e ribeiros. Desinventou até o lago, despromoveu-o a umbigo. Resistaram somente, impressos a sal na argila de meu tronco, seus indecifráveis e precários rastos, prova mais que insuficiente do prodígio que hospedei.
Dele guardo agora somente estas palavras, miúdas e fugidias como grãos de areia.

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