Manifesto

Na ressaca dos últimos desacontecimentos politológicos e partidográficos, eis que mil gargantas militarmente ensaiadas nos dizem a uma só multipla voz o que devemos pensar, o que devemos fazer, o que devemos dizer, tantas aparentadamente antagónicas, todas filhadaputamente autoritárias, legítimas, idóneas, paternais, todas como fossem ao fim e ao cabo apenas duas afiladas e requintadas presas de cobra de mato que nos envenenam os sangues, entravam os músculos, embebedam o discernimento.
Assistimos à demissão de gaspar, à saída de portas, à declaração de coelho, à reacção de seguro, ouvimos os comentários dos comentadores, as análises dos analistas, as políticas dos politólogos, as falas dos faladores de profissão, e de tudo isso emana um coerente e orquestrado fedor a merda. Um fedor que nos deixa exaustos. Um fedor nunca velho, nunca novo. Um fedor que traz em fundo uma gargalhada, gargalhada essa que promete assombrar-nos para sempre.
Este Grande Espectáculo da Realidade é vertebrado por uma dialéctica sem honra, sem moral, sem verdade, uma dialéctica tão absurda quanto lógica, tão estranha quanto íntima, uma dialéctica labiríntica, credível, totalitária, que nos conduz para onde nos quer ter, que nos ensina o que quer que saibamos, que nos diz o que quer que digamos.
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Ignoro quem sejamos, o que é na verdade a substância, a voz ou a geografia deste Nós vago e difuso. Pouco importa. Porque o que vem ganhando vulto em mim é irracional, não espera o entendimento alheio sob que forma for, não espera sequer a comunhão, a fraternidade, a pátria de um Nós sonhado e até presente na sua expressão. Não espera, aliás, nada. É talvez uma desesperança, um desapego incondicional, um estrangeirismo sem retorno.
Sou o meu último reduto. E quero só uma coisa: sangue.

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