Mensagens

A mostrar mensagens de 2012

D. dia 5

Dia 5. Ausência rima com incerteza? O toque é a certeza de todas as certezas. A electricidade das mãos, o molhado dos lábios, a impaciência dos sexos, a tesão dos olhares. A ausência abre rachas no edifício do amor. Amante sem medo não é amante. Amor só dor é só desamor. QT

D. dia 3

Dia 3. As rotinas parecem querer já assentar. Poeira levantada após um abalo? Os amantes distantes não podem ser amantes felizes. 'Todo o grande amor só é bem grande se for triste'? Receio estar certo se deixar escrito que não seremos nós a desdizer o poeta. QT

D. dia 2

Dia 2. Antónimo de toque? Distância. Toque? Pudesse a palavra substituir-lhe o calor e a certeza e ambos, palavra e toque, perderiam a sua essência. Distantes, porém, nada mais exigimos da palavra senão fazer as vezes do toque. Erros há que é bom sinal cometer. QT

As pretas do meu trabalho

Gosto de ouvir as pretas do meu trabalho. Gosto de observá-las a comer, de fixar as suas bocas carnudas a mastigar. Gosto de ver o que comem, de lhes captar a destreza displicente com que descascam e talham as maçãs. Gosto de lhes ouvir a cadência martelada e áspera das sílabas e de me espantar com o descaramento com que dizem foda ou paxaxa. De como, sem interrupção, conversam acerca de assuntos graves com uma simplicidade que fica a léguas da ignorância. Admiro-lhes a sensibilidade. Julgo-a provinda de vivências reais e não de leituras ou catequismos ocos. Gosto particularmente de observar como interpretam o ser mulher, de como corporizam essa visão. De presumir-lhes idades, de, nesse jogo mental, reparar como todas têm a mesma idade, de compreender que, ao fim e ao cabo, nenhuma tem idade, as de traços velhos que gargalham com gosto, as de aparência jovem sem impaciências ou arrogâncias. Gosto como usufruem daquele tempo de refeição, de como parecem capazes de repousar naquele perí

D. dia 1

Dia 1. Eu ficante, tu partinte. Vida nova sem ti, dizes-me, e isso ao meu fraco entendimento não passa de uma acre porém inofensiva hipótese académica. Vida nova, como um bilhete só de ida? Sem mim, como se a presença fosse matéria só tocável? Não adianta responder através de palavras. Que estes nãos que ora se calam sejam o real substrato dos nossos dias, o prolongamento dos nossos gestos, a seiva dos nossos impulsos. QT

A beleza muda do gostar

Quando aqui chegaram aqueles dois o sol esquentava estas mesas e estas cadeiras debaixo deste telheiro de madeira que prolonga esplanadamente o telhado deste café onde sempre se ouve atirada da rádio música de duas pequenas colunas dependuradas acima da vista e onde, como em regra acontece nos assuntos vários da vida, nem todas as cadeiras e mesas são fornecidas da mesma fortuna, no caso o conchego morno e luminoso deste astro magnífico que pouco se importa se é já outubro entrado ou se os palradores de cá de baixo lhe destinam expressões tão atrozes quanto sol fora de época. Nem todos os assentos estavam banhados pelo calor solar e foi por isso que estes dois não se sentaram cada qual em seu lugar assim que chegaram, antes ficaram de pé diante da mesa escolhida a travarem-se de razões em empurrões de mãos e trejeitos de beiços mimosos e praticamente ridículos, estava a cadeira do lado de dentro na sombra e a da ponta ao sol, aquela num vão escuro e frio, esta num varandim cálido de f

Telegrama 048

048 Desde há onze longos anos que este dia deixou de ser apenas mais um dia.

Quarta-feira

Subo já daqui directo a algum sítio. Qualquer. Para que, vendo-me por fora, fiquemos a pensar que sei para onde caralho vou, para onde caralho quero ir. Não parar. Não abrandar. Como tivesse ond’ir. E horas. Uma finalidade. Mesmo que mentirosa. . Minha caligrafia não é minha, mas de minhas mãos. Minhas mãos não são minhas, mas de meus braços. Meus braços não são meus, mas de meu tronco. Meu tronco não é meu, mas de meu corpo. Meu corpo não é meu, mas dos outros. . A matéria disposta como pretensa denúnica, o estilo urbanizado, populoso, como jorro de porcas  & parafusos, um escrever palavroso, adolescente. Começa assim. Depois muda. Muda o conteúdo, o outfit, o layout, a maquilhagem. Caem as coisas complicadas; prevalecem as simples. Como o amor ou a felicidade. Não há aqui espaço à ironia. A ironia não ocupa espaço, como se diz do saber. A ironia é o espaço, a sala-de-estar, o cosmos, o útero. A ironia é tudo e então não lhe reservo espaço: onde já se viu,

Estas meninas gordas

São estas meninas gordas que inspiram o amor aos meninos normais. Não à tona dos olhos ou à superfície dos dedos, mas no fundo mais fundo e inacessível do peito, e por dentro do sexo, por trás do esperma. São elas porque talvez estas meninas gordas gozam da liberdade fornecida pela gordice: o falhanço antes mesmo da tentativa. Nada a perder: tudo já perderam. Os meninos normais ouvem muito estas meninas gordas e esquecem-se das roupas, dos factos e dos pequenos futuros. Fixam-se somentemente nos lábios doces e ricos destas meninas: no seu desenho, no seu molhado, na sua promessa. Estas meninas gordas não sabem amar. Subvivem só das fatias de tempo que a custo vão debicando dos meninos normais. Não sabem amar: desconseguem de acreditar que um menino as pode normalmente amar.

O burro e o cigano

1 Atou o cigano à sebe o burro. Aceita o burro o baraço à sebe. Compreende o burro o procedimento: ele que não quer fugir, ele que não quer estar preso. Aproxima-se o filho do cigano da sebe. Fastia-se o filho do cigano do nada do sítio. Pegou a chibata do burro do pai da carroça. Chibatou o lombo do burro do fastio do nada do sítio. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outravezou o ciganito a chibatada ao lombo do burro. 2 Foge o burro do desfastio do filho do cigano. Berra o ciganito o burro! o burro! o burro! Persegue o cigano o burro. Apanha o cigano o burro. Ata o cigano à sebe o burro. Castiga o cigano à chibatada o lombo do burro da intentona. Outra vez. Outra vez. Outra vez. O burro. Ao Rui, que me contou esta estória.

Crónica futebolística

O meu clube venceu a meia-final. O outro clube ficou-se de meio-finalista vencido. O árbitro não fez amigos novos, mau grado tanto hand-shake antes e depois da partida. A bola foi pisada, chutada, socada, cabeceada. A bola foi malapatada. A relva rasgou-se em torrões de areia. Jogadores houve que se amachucaram, em número de três, encaminhados para a linha lateral para darem a vez a outros que os aguardavam ansiosos. Dos que se avariaram, um, da formação rival, mostrou-se deveras contrariado. Urrou com as artérias do pescoço enfunadas e esmurrou o relvado num salpico de areia, todo o tempo envolto numa mudez bidimensional de ecrã de televisão. Outro escavacou-se na bacia e quedou-se como destroço no chão, mas ninguém se mostrou impressionado, tanto mais que os poucos que se foram achegando ao desgraçado o fizeram no exclusivo intuito de esticar o braço ao saco do massagista, donde não paravam de brotar garrafas de água. Saiu o desembaciado já anónimo, escondido por repetições de chuto

La crisis: resegna estórica

Um grande bando de grandes fideputas peculatou o tesoiro da mátria em acto da mais reles banditagem. Cenário de banca rota: o oiro caiu muito plo buraco. Os cujos inda se afadigaram a disfarçar o roto do seu carácter com remendigagens várias, das costumeiras às exóticas, das estrangeiras às patrióticas. Pois merda. O mal estava feito e, benza-os deus, muito bem feito. Competência para a incompetência. Procedeu-se então, em sede de co-omissão para lamentar, à industriosa descrição do mui surpreendente! rombo do casco do baú da nau do inacional tesooiro, seus quandos, porquês & entãos. Heroicamente, cabalmente, sinteticamente, diagnosticou-se o mal de que afinal padeciam as finanças públicas: contágio interintencional, vírus daquém e dalém-mare, coisa muito globalizada e pós-moderna e, sobre o mais, inevitável, pelo que, remataram os dinheirologistas, toca-a-todos e porttugale não é excepção. Entrelinhamente, inocentava-se destarte o grande bando de grandes fideputas de responsabili

Do cair de mota

Gosto de voltar atrás, à manhã de sexta passada, e pensar que cheguei a pegar nas luvas quando ia a sair de casa. Quando, porém, as senti ainda ligeiramente húmidas por dentro, decidi pendurá-las com uma mola no estendal da varanda. Ignorava então que, daí a uns meros vinte minutos, o dorso da minha mão direita conheceria a aspereza das mandíbulas de alcatrão da rotunda na Rua do Funchal, à saída de Loures. Bem entendido, de que me teria valido essa previdência? É bem verdade que teria evitado esta ferida chata que me traz a mão tingida de betadine; mas imagino por outro lado a angústia em que me teria lançado a ideia de que dali a momentos iria cair de mota. Antes assim. Viver é esta inconsciência, é este desconhecimento objectivo, esta ignorância visceral de que, para o tanto que é morrermos, nos basta o nada que é estarmos vivos. . Não me lembro de entrar na rotunda. Muito vagamente, recordo-me de reparar que havia novamente água da rega no asfalto. Lembro-me ainda da imagem indefin

Nós de nós III

Duro num contexto que é cada vez mais menos meu. Nele duro, só. Só, nele duro. Neste pretexto me endureço: desfazendo-me em pedra me faço. Emparedo-me em torre desajanelada: torre chã cheia só de tectos sós por todos os lados. Muros, muralhas, acendalhas de murros. Nós de nós. Mas o tempo. Espero-o. Espero-lhe a passagem pelos dentros de mim, pelos meios dos nós de nós. Tempo mole em muro duro tanto tempa até que. Há pó, se formos mobília. Há embaço, se formos espelho. Há discórdia, se formos amor. O caralho. Fazer amor. Efectuar amor. Executar amor. Fabricar amor. Amar. Asar. Arar. Atar. Aturar. Autorizar. Autuar. Aterrorizar. Assar. Amassar. Amarrar. Amuar. Amuralhar. Arruar. Arrotear. Arrotar. Arrostar. Arcar. Armar. Amar. “Eu só queria Amor, Amor e mais nada.” Tatuaste-me um dicionário inteiro nas costas do peito. E com ele agora que faço? Com ele e agora que faço? Que faço agora com ele e?

André

Usam comigo um olhar estranho as pessoas. Como quem pergunta. André. Olhar de ponto de interrogação e reticências. Poisam o seu olhar estranho nos meus olhos e depois vagueiam em volta, pela cara do resto. Não me intrigou a primeira pessoa que isso comigo usou. Mas os parezinhos de olhos foram se sucedendo. Mil pares de vozes impossíveis, todas à uma. André. E finalmente fiquei intrigado eu. Pensei Tenho de chegar a um espelho. Chamei o elevador. Um um tomou o lugar de um dois e um zero vermelho respondeu-me ao apelo com um som sem cor. Apartaram-se as portas com irreprensível geometria. Do meio delas assalta-me novo par de olhos. André. Subo ao piso número dois. Desbloqueio a porta dos vestiários e faço-me entrar. Adiante, à mão esquerda, uma fileira de espelhos, meia dúzia deles, seis sábias bocas a esclarecer-me prontas, saiba eu ouvi-las. Num súbito impulso, porém, giro à direita direito a uma porta branca com trinco. Trincada. Levanto o tampo e acomodo-me a adiar uns minutos mais