Quarta-feira

Subo já daqui directo a algum sítio. Qualquer. Para que, vendo-me por fora, fiquemos a pensar que sei para onde caralho vou, para onde caralho quero ir.
Não parar. Não abrandar. Como tivesse ond’ir. E horas. Uma finalidade. Mesmo que mentirosa.
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Minha caligrafia não é minha, mas de minhas mãos.
Minhas mãos não são minhas, mas de meus braços.
Meus braços não são meus, mas de meu tronco.
Meu tronco não é meu, mas de meu corpo.
Meu corpo não é meu, mas dos outros.
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A matéria disposta como pretensa denúnica, o estilo urbanizado, populoso, como jorro de porcas & parafusos, um escrever palavroso, adolescente. Começa assim. Depois muda. Muda o conteúdo, o outfit, o layout, a maquilhagem. Caem as coisas complicadas; prevalecem as simples. Como o amor ou a felicidade.
Não há aqui espaço à ironia. A ironia não ocupa espaço, como se diz do saber. A ironia é o espaço, a sala-de-estar, o cosmos, o útero. A ironia é tudo e então não lhe reservo espaço: onde já se viu, um moribundo a reservar espaço à morte? O mundo não está ainda ao contrário. Não há aqui, por tanto, espaço à ironia. Amor e felicidade são, ora bem, simples coisas simples. Complicado, espinhoso, pedregoso são o amar e o ser feliz. Traço uma linha,
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daqui o amor e a felicidade: o el dorado; dacolá o amar e o ser feliz: um oceano e um continente por vencer.
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(Um bando de crianças a guinchar, jardim adentro, por baixo das sombras intermitentes das altas copas do arvoredo, estugam o passinho excitado sabe-se lá para onde ou para quê, numa tesão inocente e cansativa. De repentemente, um urro cavo e grosso: OUÇAM OS PASSARINHOS! É, como soe dizer-se, a «educadora de infância».)
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A hHistória deu-nos a saber que jamais existiu tal coisa como um el dorado. Também o amor e a felicidade são só pretextos ou álibis. A beleza do amor, a sua força e a sua paixão, reside toda na sua busca, na sua devoção. A felicidade idem-aspas. Os garimpeiros, os emigrados, nunca encontraram o el dorado. Mais que isso, muito mais que isso: eles experimentaram, eles viveram o el dorado. Também a felicidade e o amor não são territórios. A felicidade e o amor são roteiros.
Não há registos de vez alguma ter o baú cheio de moedas de oiro que repousa no fim do arco-íris por algum menino ou menina sido achado. Nos entretantos – porque é assim que os pais apanham com as lições da hHistória e as transladam para os filhos – os meninos e as meninas não mais tornaram a essa afinal de contas indispensável empresa. Os meninos e as meninas desistiram de ser meninos e meninas porque isso é ocupação sem futuro. Os pais aprovam muito esta sensata tomada de posição e logo os inscrevem, três anos depois de paridos, nos ingleses e nas informáticas. É vê-los, Pais & Filhos, as mãos dadas, a queimarem etapas da vida com destreza símia e ânsia canina. Outros el dorados os convocam.
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Uma árvore rugosa, nervosa, musculosa, de diâmetro imenso e cúpula para lá dos primeiros raios de sol, dos idos de josé-primeiro ou merda que o valha, sábia e lenta, silenciosa e bela, casa de milhares de aves, também os seus ramos dão pássaros, é a negação da hHumanidade: da Violência, da Pressa, da Infelicidade.
OUÇAM OS PÁSSAROS, ruge a mulherzinha com a macieza de uma montra a explodir na noite.
OUÇAM OS PÁSSAROS, e os crianços ouvem.
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O hHomem constrói estes espaços de deshHumanidade à laia de reserva natural: é mais assim higiénico.

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