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A mostrar mensagens de 2020

Covid-19: fenómeno discursivo e social

Já de há umas semanas a esta parte que a estratégia governamental assenta nisto: colocar o ónus no comportamento individual. Há-de ter sido visão dalgum conselheiro mais avisado. O discurso simplifica-se e a mensagem colhe: o vírus, efectivamente, transmite-se de pessoa para pessoa; logo, a transmissão e contágio são derivações directas do comportamento individual; ora se o Governo, de meados de Setembro a esta parte, não passa dez dias sem anunciar novas medidas, a conclusão é só uma: a culpa é de cada um de nós. E nem falta a instrução aos mais altos magistrados da Nação para que, sempre que possam, proclamem -  a culpa é toda minha . A mensagem adere. Mas há uma nuance muito importante - e aquele avisado conselheiro, leitor de Maquiavel e dos teóricos da Recepção, certamente pô-la logo em cima da mesa no primeiro momento: a culpa nunca será acolhida e entendida como sendo "de cada um de nós"; será, isso sim, como sendo  sempre do Outro . A recepção da mensagem traduz-se, n

Só mais um Sábado, afinal

Manhã de Sábado. Pouco passa das 9:30. Nove e trinta e três, para ser exacto. Perdão, trinta e quatro (o relógio não pára). Manhã de Sábado, dizia. Daqui a sensivelmente três horas e meia, 7+ milhões de portugueses ficam obrigados ao dever de recolhimento domiciliário. Antes de tocar ao recolher, saí à rua. Primeira coisa que adquiri e que depois me acompanhou em todo o percurso pelas ruas da vila: um pacote de rolos de papel-higiénico. Quatro rolos bem arrumados, um pacote maneirinho, muito portátil, Renova olé! , a embalagem sofisticada articula transparências plásticas com uma paleta de cores suaves e alegretes e formas entre o geométrico e o abstracto que sugerem movimento & infinito. Estes tipos esmeraram-se: a última coisa que vem à cabeça é que isto serve para limpar o cu. Cu. Ora aí está uma palavra impactante. Como será o símbolo fonético de «cu»? ⩊ Cu não leva assento. «Cu» é um vocábulo cru. Cru no estampido fonético ("cu", pam!), cru na quasi-monossemia (só me

Eu ladro e a caravana passa

Quinto dia de recolher obrigatório. Portugal terá ultrapassado hoje a marca dos 200 mil infectados com o novo coronavírus. Duzentos e quatro mil, duzentos e sessenta e quatro, para ser mais exacto. Balanço geral: recuperados: mais de 117 mil. Activos: quase exactamente 84 mil. Mortos: 3,250, nem mais nem menos. Testes realizados: mais de 3,850,000. Fonte: DGS, sexta-feira, 13, Novembro de 2020. 23:30, menos uma hora nos Açores. Foi decretado novo período de Estado de Emergência, que só no papel tem um termo. António Costa disse, carregando na nota de enfado: vame-lá ver. Disse: tudo fechado às 13h de Sábado. Disse: querem ter Natal, não querem? Todos queremos Natal. Quem não quer Natal? Querem Natal? É portarem-se bem. Disse: a culpa é toda minha e, para não haver equívocos, fecha tudo. (ouvem-se aplausos em fundo, acenos de aprovação) Disse: temos de pensar nos que estão na linha-da-frente e fazer por não sermos mais um que vai augmentar a pressão. A sua transferência foi concluída: a

Quinto dia de recolher obrigatório

Quinto dia de recolher obrigatório. Pensei em começar um texto assim: Quinto dia de recolher obrigatório. Era só isto.

Covid-19 e a sobremortalidade

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Há pouco mais de duas semanas, o INE publicou um boletim intitulado "A mortalidade em Portugal no contexto da pandemia COVID-19 - semanas 1 a 35". O resumo e o documento propriamente dito estão disponíveis para consulta aqui . O estudo incide especialmente no período compreendido entre o dia 2 de Março, data do primeiro óbito por covid-19, e 30 de Agosto. A sua principal conclusão é a de que, neste lapso temporal, se verificaram mais 6312 mortes face à média do período homólogo nos últimos cinco anos. Destas, 1822 ficaram a dever-se à pandemia. O número total de óbitos neste período foi de 57971. Temos, assim, que: a covid-19 explica 28,8% da sobremortalidade deste período a covid-19 representa 3,14% do número total de óbitos neste período o número médio diário de óbitos neste período foi de 320 óbitos/dia o número médio diário de óbitos por covid-19 neste período foi de 10 óbitos/dia Este boletim traça também uma linha de evolução no tempo em relação a estas diferentes variá

Institucionalizar a guetização

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Foi-me dada a ver uma pequena peça jornalística de Paulo Bastos e David Félix, enviados da TVI a Madrid, intitulada "Bem-vindos ao Guetto" ( link ). Ali se reporta uma nova realidade na capital espanhola: entre o bairro de Puente de Vallecas e a restante cidade, debaixo de um desses hediondos viadutos que rasgam e marcam a paisagem urbana, foi montado um posto fronteiriço. Nesse ponto, policiam-se as intenções e os motivos dos que pretendem passar. A pé, no transporte individual, no transporte público - todos têm de apresentar um salvo-conduto. Sem o documento que atesta que ali passam pelos porquês legalmente autorizados, além de simplesmente impedidos de o fazer, todos serão multados. Estamos perante a institucionalização da guetização de um bairro que alberga cerca de 235 mil pessoas. Em Portugal ainda não se chegou a este estádio burocrático. Ainda.   ◼ Em Maio, Johan Giesecke, responsável sanitário sueco, alertava, em entrevista ao Público : "a maior ameaça desta ep

Mitos da covid-19

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Desde o início do ano que tenho visitado, com inusitada frequência, os sites da DGS e da OMS. Sinais dos tempos, suponho. Seja como for, estas visitas resultam sempre, claro, em leituras de alevantado interesse cultural e recreativo. Nem outra coisa seria de esperar. Mas isto é outro nível: Esta sub-página do site da OMS ( link ) foi criada com o objectivo de desmistificar uma série de coisas que, aparentemente, foram sendo veiculadas a propósito deste rebuliço da covid-19. É de presumir, uma vez que a OMS se dá ao trabalho de os desmontar e desmentir, que estes mitos conheceram uma importante fortuna e difusão um pouco por todo o Mundo ao longo dos últimos meses. Lê-los à luz desta assumpção, e tendo como pano de fundo que vivemos no século XXI d. C. e portanto a uma valente distância de higiene dos rebarbativos e tenebrosos idos da Idade Média, dá-lhes um brilho especial. Há de tudo um pouco. Sem que estejam assim organizados, os Mitos versam quatro grandes temas: propagação & c

Tunnel vision

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Há seis meses atrás era anunciada a primeira morte por covid-19 em Portugal. Esse fúnebre marco surgiu como a espectacular apoteose de semanas de um crescendo de pânico e histeria mediático-colectivos. As notícias chegadas de Itália, primeiro, e Espanha, depois, de par com uma tremenda avalanche de pseudo-informação relativa ao novo coronavírus, foram um combustível suficientemente potente - e o fecho-de-tudo foi ganhando a forma de algo inadiável & incontornável. Recordo-me, por exemplo, de ter tido um colega de trabalho a dizer-me que o actual executivo governamental teria de, no futuro, responder pelos "milhares de mortes" que aí vinham - e isto simplesmente porque não tinha, nessa tarde, dado a esperada ordem de fecho das escolas. Essa delicada decisão apenas viria a ser tomada na tarde do dia seguinte. Mas vinte e quatro horas, nos idos de Março, tinham o peso de anos. Já então se impunha, de forma bastante evidente, a dinâmica que marca decisivamente toda a sorte de

Lembro-me que

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O último número da Ler tem na capa, no canto superior direito, o seguinte aviso: NÃO FALAMOS DE CORONAVÍRUS. Percebo-lhes o sentido e a graça e toma-me por instantes um certo sentimento de comunhão. De facto, nos dias que correm, não se fala de outra coisa. E «falar» é o verbo certo. Bem entendido, pouco se conversa sobre este tópico. «Conversar», no caso vertente, pretende remeter para uma dinâmica moral e intelectualmente honesta de reflexão, de contraditório, de partilha. A dinâmica corona-virulística não é, objectivamente, essa. A reflexão é escassa e afectada, o contraditório idem . A partilha de ideias e vivências, essa, simplesmente não tem lugar. Literalmente, não tem lugar . O tema presta-se a polarizações. É complexo – e não há tempo nem paciência para analisar e conversar acerca de temas complexos. Pertence a um domínio técnico que poucos dominam – e portanto muitos conceitos-base são mal compreendidos. Foi açambarcado pelos media , que viram nisto uma tábua-de-salvação d

Catástrofe

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Understatement do ano: dizer que esta crise pandémica trouxe consigo coisas inéditas. Um exemplo de uma dessas coisas, para memória futura: polícia prende violentamente uma jovem mulher por esta não usar máscara na via pública. Isto passou-se em Melbourne, onde desde o passado dia 5 as autoridades decretaram uma quarentena de seis semanas com recolher obrigatório entre as 20h e as 5h. Decretaram ainda o encerramento de lojas e fábricas, a paragem da construção civil e a suspensão do ensino presencial. Os cinco milhões de habitantes desta cidade estão obrigados a permanecer sempre em casa, excepto para trabalhar, procurar ou providenciar ajuda médica, fazer exercício físico ou passear os cães. Segundo o Público (edição de 4/08), que cita um jornal local, "exceptuando os motivos profissionais, todas as saídas de casa estão limitadas a um período máximo de uma hora e dentro de um perímetro de cinco quilómetros em redor da habitação". Como se percebe pelas imagens, o uso de másca

Nova entrada de diário

Reli há pouco o que escrevi a 21 de Junho. "Como é que vamos sair disto?", questionava. A pergunta mantém-se viva, latejante, em mim. Como é que vamos sair disto? Que sociedade, que ordem? Que marcas, que transformações? Pouco tenho a acrescentar ao que escrevi. Estamos a chegar ao final da primeira semana de Agosto e, se alguma coisa há que me fique na retina, é que aquele texto me parece hoje muito menos assustadiço do que então me pareceu. Estar afectado assim como estou é talvez uma manifestação de lucidez, mais que de uma especial sensibilidade. Enfim, digo isto para me convencer, para me apaziguar. Porque é muito, muito chato (a palavra que me vem sempre à cabeça é «chato») manifestar a minha posição, a minha visão de tudo isto. É-me penoso («penoso» diz melhor) sustentar a posição que assumi. Aborreço os outros e desgasto-me a mim. Tanto que, de há umas semanas a esta parte, mal o faço. Seja como for, fala-se cada vez menos acerca deste corona-vírus (há pouco mais dois
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♜ O marido veio dar com ela a cismar sobre os tachos do almoço. - Olha que isso está a querer levantar fervura. Arrancada ao seu alheamento, a boa esposa atarantou-se e deixou cair a colher de pau ao chão. Dobrou-se ela mesma para a apanhar e fungou duas vezes sem dizer palavra. - Que é que tu tens, mulher? Isso está a pontos de deitar por fora. Ela baixou o lume às batatas e, enquanto limpava as mãos ao avental, atirou-lhe: - Tens de ir marcar o do primeiro-esquerdo. O marido teve um sobressalto. Sentou-se lentamente e esteve um momento em silêncio a barrar a manteiga no pão. Ruminava. Finalmente, murmurou: - O do primeiro-esquerdo? - O do primeiro-esquerdo. O homem equilibrou cuidadosamente a faca sobre o pacote da manteiga e ali deixou o olhar pousado enquanto digeria aquela informação. Acabou por dizer, como quem pensa alto: - Achamos sempre que estas coisas só acontecem aos outros. A mulher deixou bruscamente o fogão e sentou-se à frente dele. - Já vis

Entrada de diário

Um mês passado sobre o início do desconfinamento, pergunto-me: como é que vamos sair disto? Quem, enquanto comunidade, depois de tudo isto, seremos? Que nova feição assumirá a nossa sociedade? Quando, nos idos de Março, as coisas se precipitaram no sentido do fecho-de-tudo, ninguém pensou no pós-confinamento. A esta distância, dir-se-ia mesmo: ninguém pensou, ponto final. Este «ninguém» implica, desde logo, os responsáveis políticos. Mas, mais vivas, vêm-me ao pensamento todas as pessoas. Todas as pessoas, isto é, todos nós. Dir-me-ão - E que é que poderíamos então ter pensado que agora fizesse alguma diferença? Nada, claro. E, no entanto, a decisão política teve claramente, inequivocamente, uma origem popular. Houve, como talvez nunca tenha havido antes, uma pressão pública para que medidas drásticas fossem tomadas. Muito mais do que os chamados responsáveis políticos, interessam-me os responsáveis anónimos. O ímpeto de fazer-o-que-for-preciso para combater um problema de saúde