Entrada de diário

Um mês passado sobre o início do desconfinamento, pergunto-me: como é que vamos sair disto? Quem, enquanto comunidade, depois de tudo isto, seremos? Que nova feição assumirá a nossa sociedade?

Quando, nos idos de Março, as coisas se precipitaram no sentido do fecho-de-tudo, ninguém pensou no pós-confinamento. A esta distância, dir-se-ia mesmo: ninguém pensou, ponto final.

Este «ninguém» implica, desde logo, os responsáveis políticos. Mas, mais vivas, vêm-me ao pensamento todas as pessoas. Todas as pessoas, isto é, todos nós. Dir-me-ão - E que é que poderíamos então ter pensado que agora fizesse alguma diferença? Nada, claro. E, no entanto, a decisão política teve claramente, inequivocamente, uma origem popular. Houve, como talvez nunca tenha havido antes, uma pressão pública para que medidas drásticas fossem tomadas. Muito mais do que os chamados responsáveis políticos, interessam-me os responsáveis anónimos.

O ímpeto de fazer-o-que-for-preciso para combater um problema de saúde pública é legítimo e natural e necessário. Mas nunca foi bem disso que se tratou. O combate de um problema desta natureza é algo que, ainda que ligado ao instinto de sobrevivência, se funda forçosamente na razão. Ao fim e ao cabo, a saúde comunitária é um conceito muito mais abstracto do que o da saúde pessoal. É talvez da tensão entre a gestão de um problema de saúde pública (razão) e a reacção individual a um problema que, em concreto, é de saúde pessoal (instinto) que nascem todas as insensatezes deste imenso processo.

Esta doença é séria enquanto problema de saúde pública. Esta doença não é grave enquanto problema de saúde individual. De resto, este vírus continua a propagar-se justamente por isso: 9 em cada 10 infectados não precisam de cuidados hospitalares. Acresce que, desses, uma percentagem ainda incerta (mas de qualquer maneira não dispicienda) nem sequer desenvolve qualquer tipo de manifestação ou sintoma. Os riscos que um quadro destes representa em termos de saúde pública são facilmente imagináveis e são eles que levam os especialistas a sugerir a adopção de um conjunto muito bem definido e perfeitamente estabilizado (repito: perfeitamente estabilizado) de recomendações de higiene e segurança.
Tudo isto assenta numa concepção essencialmente racional da vida em sociedade. Pois nada podia contrastar mais com a superstição, a paranóia colectiva e o medo visceral que parecem pautar o pensamento e o comportamento da generalidade das pessoas. É aqui que entra o instinto. A Humanidade revela-se.

A comunicação social tem objectivamente um papel-chave em todo este processo. O aparato mediático montou, sem olhar a meios, um cerco mental. A espectacularização desta pandemia fez-se, sem escrúpulos, da descontextualização de factos, da deturpação e manipulação de dados, do puro e ordinário torrencialismo. Numa palavra, a Informação desinformou.

E aos cépticos desencantados e snobs a quem já nada surpreende e indigna, que já viram tudo e para quem já nada há de novo debaixo do Sol, isto parece ser, pela sua escala, pela sua natureza, pelos seus profundíssimos efeitos, um momento-charneira.

A "guerra" a esta doença significou a suspensão radical da sociedade. Foi um combate, em rigor, exclusivo: o ataque à Covid-19 deixou de fora todas as outras frentes - a começar pela área da Saúde. Além desta, da Economia e das Finanças públicas (as mais comentadas no espaço público), importa frisar uma outra: a das Relações Sociais.
Bem sei que as relações interpessoais andavam já pelas ruas da amargura (diga-se de passagem, o mesmo se passava com a Saúde, a Economia e as Finanças), mas atingimos, parece, novos cúmulos. O impacto mental e comportamental deste extraordinário processo ainda está por fixar, mas há sinais alarmantes - a começar pelas crianças.
Como será o regresso às aulas em Setembro?

Antecipo já o quão alarmista ou precipitada me parecerá esta interrogação (ou melhor, o que ela encerra) uma vez lá chegados. Mas, a esta distância, não vejo como é que os próximos 70 dias poderão inverter a tendência que hoje se esboça - que, de resto, opto por não tentar descrever ou nomear - o que é provavelmente uma decisão muito razoável.

O sono, esse simulacro de Morte, impõe-se-me. Melhor será terminar por aqui.

Reli o que escrevi e tudo me soa ora assustadiço, ora fúnebre. Pareço afectado. Mais uma vez me confronto com a tremenda dificuldade de escrever seja o que for acerca deste assunto.
Enfim, talvez sejam isto sintomas de um certo cansaço por estar-de-fora. Tomara ter alinhado com toda esta loucura desde o primeiro dia.

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