Na ressaca das Legislativas de 2025, subsídios para a compreensão dos fenómenos André Ventura & Chega

1 Tomado de forma lata, o Comentário acerca das Legislativas de 18 de Maio, em geral, e dos resultados do partido Chega! (CH), em particular, tem dado corpo a duas grandes correntes, chamemos-lhes assim, analíticas: a corrente forense e a corrente ética.

A primeira procura a culpa. Bem entendido, a culpa pela ascensão (ou pela consolidação, como se queira pôr) do CH.

A segunda organiza os acontecimentos segundo uma lógica de Bem e Mal. E votar no CH foi, ou é, inequivocamente, um mal.

Uma e outra são, é claro, interdependentes. Não raro surgem juntas, ou uma entronca na outra, ou aquela é premissa desta. Enfim, de uma maneira ou de outra, ambas julgam qualitativamente um voto e há nisso, mesmo que em diferentes graus, uma carga moral(ista).

Ora, isto não se observa senão relativamente ao voto CH. E sim, há boas razões para isso – tão boas que me escuso de as elencar. Mas nem por isso deixa de ser um dado que merece reflexão.

Outro dado: quando o emissor do Comentário aqui aludido é agente do PS ou do PSD, já tem acontecido ficar a sensação de ralhete, como quem diz: “– Então mas não vos dissemos já como é que se vota…!?”

É difícil imaginar um cenário em que estas correntes analíticas (e outras afins) não resultem, a prazo, em favor do CH.

2 O problema deste Comentário – a haver um – não será tanto de objecto ou, até, de substância, mas, isso sim, de forma e objectivos ou, mais ainda, de espírito. Afinal de contas, não há senão bem em estudar, em interpretar, em analisar os resultados eleitorais do passado Domingo e, em especial, o (epi?) fenómeno CH.

E por isso cabe a perguntar: por que raio o voto no CH?

Haverá factores, digamos assim, internos e externos. Os internos dirão respeito às dinâmicas próprias deste partido e dos seus responsáveis; os externos dirão respeito a dinâmicas de contexto.

Esta proposta de divisão é, como é evidente, meramente académica e serve apenas propósitos de sistematização e comunicação; muitos factores internos não se compreenderão senão em conjugação com factores externos, e vice-versa.

Dito isto, consideremos três grandes factores internos: o ser “anti-sistema”; a manipulação como modo privilegiado de comunicação; e a – chamemos-lhe assim – unipessoalidade.

Sobre o ser “anti-sistema”, trata-se, fundamentalmente, de não ser: não ser Centrão, não ser Político, não ser como Eles. É um jogo de oposições que remete pragmaticamente para o imaginário político nacional, cujas nuances mais subtis (e mais fundas) escaparão a um olhar estrangeiro.

E não bastam a novidade própria de um partido que é recente ou a sua virgindade no que a “casos” diz respeito (mais declarada do que efectiva, como se viu na última legislatura). É preciso – é mesmo existencialmente mandatório – que a acção pública do CH obedeça a uma performatividade “anti” (paralelos com os movimentos futuristas do início do século passado não virão a despropósito).

O palco maior desta dramatização é, desde logo, a Assembleia da República. O desrespeito explícito e continuado dos estatutos e do protocolo (e mesmo das mais elementares regras de educação e convivência) surge, neste quadro, como algo de premeditado e ensaiado. Como estratégia comunicacional.

Quanto à manipulação, trata-se, igualmente, de uma estratégia comunicacional. Ela decorre, de resto, do ponto anterior: o aparato “anti” do CH é no essencial uma construção narrativa, uma ficção que, posto que assente em traços de autêntica incivilidade, aponta à manipulação da opinião pública e mais concretamente à difusão da imagem de que este partido está fora e está contra o Sistema (importa notar, já agora, que não é claro o que seja o “Sistema”; essa ambiguidade é capital para a eficácia da proposta) e que é, portanto, uma alternativa que não é mais do mesmo.

A esta manipulação fundamental somam-se outras: da estigmatização do Diferente ao ataque aos media convencionais (e em especial à RTP), passando pelas estratégias de vitimização e desinformação –, todas tendo no estímulo emocional a chave.

Não sendo inédito, sequer no panorama partidário português, o apelo à emoção adquire no discurso público do CH uma nova centralidade. Mais do que mero vazio ideológico e programático (que não deixará de ser), o monotematismo agudo da campanha do CH pode ser entendido como uma hiper-simplificação da substância que permite, no plano da forma, uma mais eficaz exploração das idiossincrasias do ecossistema mediático nacional.

Nada do que fica dito é alheio à crise dos media, em particular do jornalismo televisivo e seus inenarráveis canais noticiosos 24/7, ou, noutro domínio, à alienação transversal da massa de Cansados – produto das exigências do Trabalho Assalariado, das agruras das deslocações pendulares, da toxicodependência dos smartphones, dos imperativos da Sociedade de Consumo, da precariedade de cada um dos Direitos básicos, da Violência estrutural do quotidiano (outras tantas olímpicas omissões da campanha eleitoral, já agora) – que é, hoje, o eleitorado português.

Mas estes são dois factores externos e ainda nos resta um factor interno – o que chamámos de “unipessoalidade” do partido.

Será possível imaginar o CH sem o André Ventura? Talvez que outros quadros venham a constituir, gradualmente, uma base de alguma sustentabilidade, mas, neste momento, o CH parece estar mais dependente de Ventura do que o CDS-PP esteve de Portas ou o BE de Louçã.

A alusão a estes dois líderes partidários não é inocente: a saída de cena desta dupla é amiúde associada à depressão posterior de um e outro partidos (o que, diga-se de passagem, ignora que o melhor resultado eleitoral de sempre do Bloco foi alcançado em 2015, com Catarina Martins ao leme). Imagine-se o que significaria para o CH um afastamento de André Ventura…

A redução a uma só voz – a de Ventura, entenda-se – impõe-se-nos como vantagem mediática, não apenas no controlo da mensagem (o que nem por isso tem evitado permanentes contradições… conquanto nem isso belisque o discurso cheguista: também neste campo nada se define no domínio do racional), como principalmente na agilidade reactiva – e o actual Jornalismo dos “directos” reduziu-se grandemente à reacção – de alguém que (ainda) reúne amplo consenso interno e que não lida (ainda) com as diferentes susceptibilidades das clientelas partidárias.

Mesmo que de fugida, importa registar que esta qualidade de partido unipessoal é, simultaneamente, um dos maiores riscos para o futuro do CH. De par com o fine tuning discursivo e representacional que o partido provavelmente precisará de ensaiar para manter e mesmo alargar a sua base de votantes (supondo que a fórmula actual estará próxima da sua capacidade de expansão), a transição de espectáculo one man show para projecto policentralizado será o processo-charneira do CH para o próximo ciclo eleitoral.

E, quiçá, o processo-charneira do Portugal democrático tal como o conhecemos.

3 Vimos três factores internos; vejamos agora três factores externos (e desde já se registe: deixaremos de fora o elemento de tendência ou contágio internacional, já bastamente debatido; seja como for, não há aqui qualquer pretensão de esgotar o tema). São eles a identificação, a ausência de lideranças e/ou programas mobilizadores noutros partidos e o falhanço transversal e incompreensível da generalidade das governações dos últimos anos.

Os dois últimos explicam-se suficientemente no seu enunciado, pelo que nos deteremos somente no primeiro factor.

A galopante popularidade do CH (recordemos que, até Janeiro de 2022, o partido só tinha um (1) mandato na AR, mercê de aproximadamente 67 mil votos, a anos-luz dos 1.3 milhões que granjeou há poucos dias) indica, por maioria de razão, uma dinâmica de identificação.

Isso, por sua vez, passará por elementos como o carisma (ou coisa que o valha) de André Ventura, a inteligibilidade e eficácia do seu discurso ou a palpabilidade rasa das suas bandeiras (e se estas não servirem, ele brandirá outras).

Poderemos, com relativa segurança, evocar um outro elemento: o nacionalismo endémico de uma parte significativa da população portuguesa.

E sim, com isto queremos i) sugerir que o CH representa e anima, de forma consistente, um ideário nacionalista e ii) sugerir que a cultura e a política portuguesas se fundam, historicamente, num imaginário essencialista de «hiper-identidade» (para usar a expressão de Eduardo Lourenço) e exaltação nacional.

Mais: diz-nos a História dos últimos 200 anos que os momentos de crise nacional mantêm uma correlação estreita com os picos de manifestação nacionalista. Pois cabe dizer-se que o crescimento do CH (2022-2025) se dá num quadro de crise social e económica que remonta (para não recuar a outros idos) aos chamados anos da troika e acelera brutalmente com a pandemia de COVID-19 e com os efeitos da invasão russa da Ucrânia – que se dá imediatamente a seguir às legislativas de Janeiro de 2022, num momento em que o CH elegera já 12 deputados.

Visto daqui, o élan do CH parece longe de esgotado.

4 No ano mesmo em que se celebram os 50 anos da primeira eleição democrática livre em Portugal, o voto popular determina uma maioria constitucional de partidos que, na melhor das hipóteses, secundarizam o legado da “Revolução dos Cravos” e, na pior, o negam abertamente. Senão vejamos: PSD, CDS e IL reclamam-se herdeiros do 25 de Novembro, movimento consagrado há poucos meses; o CH pugna, pura e simplesmente, por uma quarta Constituição.

Afigura-se-nos, portanto, razoável admitir – e fazêmo-lo com pesar – que o ciclo «25 de Abril» chegou ao seu termo.

 

Dito isto, importa alguma perspectiva.

As últimas cinco décadas foram pouco menos que uma anomalia na História portuguesa. Entre ditaduras, absolutismos e Inquisição santa (uns bons 300 anos dela), só as intermitências da I República (e só nos primeiros anos, porque logo veio o Sidonismo) e certos repelões do liberalismo oitocentista é que comparam com o que o país experimentou de 1976 a esta parte.

Noutro plano, urge não ignorar que, de uma parte, tão grande foi a “vitória” do CH e tão grande a “derrota” do PS e, no entanto, um e outro têm votações equivalentes; e que, de outra parte, feitas as contas, AD e PS somados representam, ainda, 55% dos votos e mais de 60% dos deputados.

E é certo que esta segunda votação CH acima do milhão de votos veio consolidar a noção de que o bipartidarismo pode ter os dias contados. Mas ainda tem lugar o “pode”.

5 Fechamos com duas preocupações futuras. E apenas duas por economia de texto. Preocupações, ao contrário de bons candidatos & bons programas, há-as em abundância.

Uma: o risco real de privatização do serviço público de rádio e televisão. A AD esboçou o gesto em 2024 e, nos últimos meses, tem procurado minar, à semelhança do CH e da cartilha populista, a credibilidade do Jornalismo.

Outra: a corrida ao armamento. Daqui a um ano, mais coisa menos coisa, podemos juntar a uma maioria qualificada de partidos não-identificados com os ideais internacionalistas de Abril um Presidente da República ex-militar de carreira…

E nem será de excluir (tanto quanto vejo) uma candidatura do próprio André Ventura à Presidência. Parece evidente que seria, desgraçadamente, um forte candidato.

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