Dois cidadãos trajados em tons pardos dialogam com gravidade numa esquina do grande terreiro da vila. Têm os olhares postos numas grandes árvores que há do outro lado da estrada.
- Aquele.
- O da mesa da ponta, de t-shirt amarela?
- Esse.
Um deles tira um maço de tabaco do bolso interior do casaco. Servem-se cada um de um cigarro e põem-se a fumar. Fazem-no com uma pachorra calculada. Parecem olhar o monumento aos mortos em combate.
- Eu não te disse?
- Tens razão. Tem mesmo cara de assintomático.
- Eu disse-te.
Demoram-se nas últimas baforadas. Deitam as pontas ao chão, pisam-nas demoradamente. Fazem-se um levíssimo aceno e começam a caminhar na direcção da esplanada. Dirigem-se à mesa da ponta e interpelam um tipo de t-shirt amarela absorto na leitura de um livro usado.
- Importa-se de nos acompanhar?
Olham-no do alto, com insistência. O tipo da t-shirt parece não compreender. Após um instante de silêncio, repetem:
- Importa-se de nos acompanhar?
O tipo da t-shirt ajeita-se na cadeira e pousa o livro na mesa. Parece ainda ajustar o olhar. Um casal de uma mesa suficientemente perto apercebe-se da situação e apressa-se a pegar nas suas coisas. Enquanto abandonam a esplanada, arqueiam as sobrancelhas a dois adolescentes que ocupavam uma outra mesa. Designam com um gesto discreto do pescoço aquilo que se passa na mesa da ponta. Os dois adolescentes rapidamente recolhem os seus telemóveis e partem dali, lançando umas miradas aflitas por cima do ombro.
- Não estou infectado, se é isso que vos traz aqui.
- Isso é o que veremos.
- Não vos acompanharei. Lamento.
- Isso é o que veremos.
Dois agentes da polícia aproximam-se. Um dos cidadãos de roupa parda faz-lhes sinal. Com um nervosismo mal disfarçado, murmura-lhes algo imperceptível enquanto aponta o tipo da t-shirt. Os dois agentes, após uma rápida análise da situação, dirigem-se a este com uma autoridade metálica.
- Queira acompanhar estes dois cidadãos.
Vendo que já se iam ajuntando alguns mirones em volta, o tipo da t-shirt suspira e pega no livro. Ergue-se.
- Enfim, seja.
Vão todos cinco rua abaixo, direitos ao Centro de Testes, sob os olhares de caso dos transeuntes.
Um cidadão que acartava umas caixas de cartão para dentro de uma pastelaria, estaca e pergunta a um outro que ali pasmava para aquilo:
- Outro assintomático?
- Só pode.
- Raios partam. Isto um gajo nunca sabe quem tem ao lado.
- Pode crer.

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