O marido veio dar com ela a cismar sobre os tachos do almoço.
- Olha que isso está a querer levantar fervura.
Arrancada ao seu alheamento, a boa esposa atarantou-se e deixou cair a colher de pau ao chão. Dobrou-se ela mesma para a apanhar e fungou duas vezes sem dizer palavra.
- Que é que tu tens, mulher? Isso está a pontos de deitar por fora.
Ela baixou o lume às batatas e, enquanto limpava as mãos ao avental, atirou-lhe:
- Tens de ir marcar o do primeiro-esquerdo.
O marido teve um sobressalto. Sentou-se lentamente e esteve um momento em silêncio a barrar a manteiga no pão. Ruminava. Finalmente, murmurou:
- O do primeiro-esquerdo?
- O do primeiro-esquerdo.
O homem equilibrou cuidadosamente a faca sobre o pacote da manteiga e ali deixou o olhar pousado enquanto digeria aquela informação. Acabou por dizer, como quem pensa alto:
- Achamos sempre que estas coisas só acontecem aos outros.
A mulher deixou bruscamente o fogão e sentou-se à frente dele.
- Já viste isto? Aqui, no nosso prédio!
- Tu tens a certeza?
A mulher teve um gesto de indignação.
- Achas que eu te diria uma coisa destas se não tivesse?
O marido achava. Mas escusou-se a comentar. Já lhe chegava ter de ir marcar a porta do do primeiro-esquerdo. Levantou-se decidido.
- Vou lá já.
E acrescentou, com método:
- Depois tenho de actualizar a plataforma de identificação de casos e chamar o piquete de desinfecção.
A mulher levantou-se com ele, mexeu nervosamente no avental e, sentindo de súbito a garganta embargada, ficou-se a olhá-lo imbecilmente enquanto ele saía da cozinha. Ainda foi até ao corredor da entrada para o ver sair de casa, chave numa mão e latinha de tinta vermelha na outra.

O bitoque estava sofrível. Enquanto tomava a bica, matutava na arte perdida do bitoque. Veio-lhe à cabeça uma personagem de um livro que lera que penava por encontrar um sítio que lhe servisse uma torrada com manteiga em condições. Pagou a conta e foi caminhando até casa. Ia pensando, entre o divertido e o indignado, na degradação do bitoque, na extinção do bitoque. Já antecipava como seria abrir o jornal e ver a notícia, dali por trinta ou quarenta anos, da candidatura oficial do bitoque a património material (ou era imaterial?, nunca sabia) da Unesco. Mas, assim que contornou a esquina para a sua rua, chamou-lhe a atenção uma carrinha de uma equipa de desinfecção.
- Só me faltava mais esta.
Quando é que se livrariam daquilo tudo? Tinha sido aprovado em reunião de condomínio que se fizesse uma fumigação às áreas comuns do prédio todos os meses. Na ocasião, abstivera-se. Não via lógica naquilo, parecia-lhe exagerado e, até, perigoso. Além disso, o número de infectados no concelho nunca fora senão residual. Mas aquelas reuniões exasperavam-no e votar contra, além de inútil, ia provavelmente prolongar o martírio. A abstenção, só por si, já lhe dera água pela barba.
- Para si não é importante a saúde e a segurança de todos aqui no prédio?
Ainda ensaiou responder que não era bem disso que se tratava, mas puseram-se a falar por cima dele e viu-se remetido ao silêncio. Enquanto entrava no prédio, recordava-se do olhar de ódio que a do terceiro andar então fixara nele.
Subiu o lanço de escadas na esperança de não se cruzar com nenhum dos técnicos de desinfecção. O aparato dos equipamentos de protecção, que inicialmente tanto o divertira, era-lhe agora apenas fastidioso. Só então lhe ocorreu que era dia 18 ou 19, um sábado, e que as desinfecções eram sempre na primeira segunda-feira de cada mês. A carrinha lá fora, recordava-se agora, ostentava, escrita em garrafais fluorescentes numa das laterais, a palavra PIQUETE.
- Que é que se terá passado?
Chegado ao seu andar, o primeiro, ficou aliviado por não encontrar lá ninguém. Apressou o passo e meteu a chave à porta. Mas algo não estava bem. Suspendeu o movimento. Sem tirar a chave da fechadura, desviou ligeiramente o pé do tapete da entrada e focou o chão junto à porta. Viu com nitidez dois grandes pingos vermelhos. Sem levantar a cabeça, deu um passo atrás e só então encarou com a sua porta. Bem à altura dos olhos, via-se um grotesco círculo feito a tinta vermelha.
- Foda-se. Fui marcado.

- Mas eu não estou infectado, repetia para si próprio.
Deixara-se cair no maple da sala. Sentia a pulsação ligeiramente alterada e não conseguia pensar com lucidez. Esteve nisto uns minutos, até que fez um esforço para se recompor.
- Vê se te acalmas, mas é. Isto não é o fim do mundo.
De facto, que é que lhe podia acontecer? Faria a sua vida com toda a naturalidade. Se se cruzasse com algum vizinho, explicaria simplesmente que só podia ter sido um engano. Enfim, estas coisas acontecem. A verdade é que ele sempre cumprira todas as recomendações das autoridades e nunca tivera qualquer sintoma fosse do que fosse. Estava certo de que imperaria o bom-senso e todos lamentariam o mal-entendido. Na segunda de manhã, sem falta, mandaria lá alguém limpar-lhe a porta.
Este pensamento fê-lo recuperar a calma. Foi até à cozinha, bebeu um copo de água e meteu-se no duche. Quando, passados dez minutos, voltou à sala, já nem se lembrava da marca que tinha na porta.

No dia seguinte, bem cedo, saiu para a sua corrida matinal. A visão daquele círculo hediondo assomou-lhe ao pensamento assim que acordou, mas logo a sacudiu da mente, repetindo, por outras palavras, o que dissera a si mesmo na véspera.
Já na rua, apercebeu-se de que não trazia o telemóvel consigo. Para não voltar a entrar no prédio e sujeitar-se a cruzar-se com alguém apesar do matutino da hora, foi assim mesmo. Não teria os registos da corrida daquele dia, mas paciência. Arrancou.

Em cima, no terceiro andar, a vizinha estivera a observá-lo da janela do quarto, desnecessariamente escondida atrás da cortina. O marido resmungou:
- Que é que estás aí a fazer? Volta para a cama, ainda nem são sete.
A mulher rodou lentamente sobre si mesma e, calculando o seu efeito, deixou cair sobre o leito conjugal esta afirmação tremenda:
- Ele saiu.
O marido levantou-se dum pulo, de olhos esbugalhados.
- Como assim, saiu?
- Saiu. Foi dar a sua corrida matinal.
- Um cabrão destes, pá!
E começou a vestir-se, com violência. A mulher gozava o espectáculo. Não lhe disse nada enquanto ele esteve na casa-de-banho. Pôs-se a ajeitar uns cabides, distraída. Quando deu por que voltava ao quarto, atirou-lhe, sem se virar:
- É bom que faças alguma coisa.
O homem não lhe respondeu coisa nenhuma e saiu, esbaforido.

Quando, trinta minutos mais tarde, estafado, se reaproximava da sua rua, deu por si a recordar o dia anterior. Reviu mentalmente a imagem da carrinha de desinfecção à porta do prédio e esboçou um esgar semelhante a um sorriso nervoso.
- E hoje, que me espera para lá daquela esquina?
Desfez o passo de corrida e fez os últimos metros até à sua rua a caminhar. Ficara subitamente com os sentidos alerta, apesar da respiração descompassada. Assim que dobrou a esquina, viu um carro da polícia parado à porta do prédio. Pareceu-lhe então ouvir um grito agudo e, antes que tivesse tempo fosse do que fosse, dois agentes deixaram o hall do prédio e precipitaram-se na sua direcção. Pareceu-lhe ver o do terceiro andar a espreitar por trás deles. Enquanto um dos agentes ia descrevendo um largo círculo para o contornar pela esquerda, quiçá para se colocar em posição de lhe barrar a rectaguarda, o outro, sem se aproximar muito, começou a perguntar-lhe o nome e se era morador no primeiro-esquerdo daquele edifício. Segurava, numa das mãos, uma daquelas compridas varas de imobilização de suspeitos que se recordava de ter visto já não sabia quando no telejornal. Incapaz de processar o que se passava, foi respondendo como pôde às questões do agente que tinha à sua frente. Depois, tudo aconteceu num segundo. Tendo ouvido um baque surdo vindo das suas costas, virou-se de repente para trás. Quando fez este movimento, o agente da vara investiu sobre ele e, confinando-lhe os braços de encontro ao tronco, imobilizou-o. Desequilibrou-se e acabou por bater com o ombro e a cabeça na parede do prédio. Só não caiu no chão por acção do agente, que o conseguiu manter de pé sem ser ele próprio arrastado. O segundo agente, que se posicionara por trás dele, gritava-lhe que ficasse quieto e não resistisse. Sentia o rosto banhado num suor pegajoso e tinha o lado direito da cabeça a latejar intensamente. Ao cansaço da corrida, somava-se o cansaço do choque e, pior, o cansaço provocado pela pancada na parede. Viu-se levado para a parte de trás do carro. Uma placa de acrílico dividia o habitáculo em dois e isolava a parte traseira para onde o empurraram. Quando já lá estava dentro, desconectaram bruscamente a vara daquele aro metálico que lhe cintava os braços contra o tronco e fecharam a porta do carro com violência. Ali dentro estava horrivelmente quente e abafado. Perdeu a noção do que o rodeava durante uns momentos. Quando voltou a si, já o carro estava em andamento. A pouco e pouco, apesar do ruído do motor e da confusão mental que ainda experimentava, foi distinguindo as palavras que vinham do banco da frente. As vozes chegavam-lhe abafadas, mas os agentes berravam. Pareciam discutir.
- Não te rales com isso, pá, já te disse. Estamos tranquilos, ouviste? Tran-qui-los.
- Mas o gajo está cheio de sangue na cabeça! Já viste bem aquela merda?
- Qualquer coisa, dizemos que resistiu.
- Mesmo assim, pá, mesmo assim...
- Ouve lá, o gajo estava marcado e mesmo assim saiu de casa!
- Sim, é verdade...
- Mais, saiu sem telemóvel! Ele sabia bem o que estava a fazer, não me fodam.
- É verdade...
- E digo-te mais. Qualquer coisa, aquele casal de malucos do terceiro testemunha em nossa defesa. Viste bem como os gajos queriam que o levássemos.
Foi reconhecendo a estrada em que seguiam. Devia ter perdido os sentidos por uns segundos apenas. Estavam ainda perto de sua casa. O caminho que tomavam era óbvio: ao fundo daquela rua ficava o Centro de Testes.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados