Só mais um Sábado, afinal

Manhã de Sábado. Pouco passa das 9:30. Nove e trinta e três, para ser exacto. Perdão, trinta e quatro (o relógio não pára). Manhã de Sábado, dizia. Daqui a sensivelmente três horas e meia, 7+ milhões de portugueses ficam obrigados ao dever de recolhimento domiciliário.

Antes de tocar ao recolher, saí à rua. Primeira coisa que adquiri e que depois me acompanhou em todo o percurso pelas ruas da vila: um pacote de rolos de papel-higiénico. Quatro rolos bem arrumados, um pacote maneirinho, muito portátil, Renova olé!, a embalagem sofisticada articula transparências plásticas com uma paleta de cores suaves e alegretes e formas entre o geométrico e o abstracto que sugerem movimento & infinito. Estes tipos esmeraram-se: a última coisa que vem à cabeça é que isto serve para limpar o cu. Cu. Ora aí está uma palavra impactante. Como será o símbolo fonético de «cu»? ⩊ Cu não leva assento. «Cu» é um vocábulo cru. Cru no estampido fonético ("cu", pam!), cru na quasi-monossemia (só me ocorre "cu do mundo" como uso figurado), cru até na morfologia linguística: só um érre separa «cru» de «cu». Logo um érre, a única letra que arranha. Cruezas da Vida.

Mas dizia. Os rolos de papel-higiénico pareceram-me um must-have para caminhar pela rua neste dia, subtil (muito) referência aos paradigmáticos açambarcamentos de Março passado. Mas da rua. A rua: é palpável uma tensão nas pessoas. A atmosfera está pesada, eléctrica. As pessoas entreolham-se, esgazeadas, por sobre a aba azul-hospital das máscaras sociais. Os olhares ricocheteiam à direita e à esquerda, rápidos e aflitos, de ameaça em ameaça. Os braços estão encolhidos contra o corpo, num reflexo nervoso e rígido. Apertam-se as golas escuras dos casacos escuros até cima, estuga-se o passo. Pressente-se no andar o medo visceral, mal-disfarçado, dos bichos acossados.

...

Na verdade, não. Nada disso. Está tudo normal.

Normalinho, normalinho. Isto? Isto não é nada connosco, pá. Recolher obrigatório à uma da tarde? E atão? Que mal vem daí ó mundo? Olha qua porra, hã! A gente nem costumamos sair ó sábado, pouca vez saímos, só quando vamos almoçar à minha sogra ou, vá, ó supermercado tratar do avio. Não, senhor. Por cá, tudo bem. E mais, isto tem que ser. Já vistes os númaros? Tem que ser, pá. Isto tem que se cortar as vazas ós espertos, só assim é que isto vai lá. Até te digo mais: esta merda só vai lá fechando-se tudo, tudo, tudo. Tudo pra casa, ala que é Cardoso! Tem que ser, pá. Tem que ser. Escreve o qu'eu te digo. Tu não me queres acraditar. Os gajos já falam numa terceira vaga pra Março ou lá o que é. Isto nem os gajos sabem. Vamos todos apanhar esta merda, essa ninguém me tira. Agora, andarmos aqui com paninhos quentes, francamente. Eu sou-te honesto: isto só vai lá com fechar-se isto tudo outra vez. (pausa dramática) E, e.

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