Covid-19: fenómeno discursivo e social

Já de há umas semanas a esta parte que a estratégia governamental assenta nisto: colocar o ónus no comportamento individual. Há-de ter sido visão dalgum conselheiro mais avisado. O discurso simplifica-se e a mensagem colhe: o vírus, efectivamente, transmite-se de pessoa para pessoa; logo, a transmissão e contágio são derivações directas do comportamento individual; ora se o Governo, de meados de Setembro a esta parte, não passa dez dias sem anunciar novas medidas, a conclusão é só uma: a culpa é de cada um de nós. E nem falta a instrução aos mais altos magistrados da Nação para que, sempre que possam, proclamem - a culpa é toda minha.

A mensagem adere.

Mas há uma nuance muito importante - e aquele avisado conselheiro, leitor de Maquiavel e dos teóricos da Recepção, certamente pô-la logo em cima da mesa no primeiro momento: a culpa nunca será acolhida e entendida como sendo "de cada um de nós"; será, isso sim, como sendo sempre do Outro. A recepção da mensagem traduz-se, no íntimo cognitivo do interlocutor governamental (o Povo, chamemos-lhe assim), nestes termos: a responsabilidade está em todos os outros - que não Eu - que não cumprem.

Um discurso para as massas como aquele implicado necessariamente em qualquer nova conferência pós-Conselho de Ministros fica quase sempre reduzido aos seus mínimos denominadores comuns (até por força da mecânica digestiva dos media, com os seus sound bites e os seus infindáveis comentadores). E aí vingam noções e percepções elementares que convocam sentimentos como o Medo, a Culpa ou a Antipatia. Com isto, ao mesmo tempo que dá as necessárias provas de vida (necessárias, bem entendido, ao seu específico umbiguismo), o Governo transfere a quase totalidade da responsabilidade do rumo da crise pandémica para a vaga entidade do Outro.

Ou melhor: esta transferência não é directa; ela é apenas sugerida, induzida, fomentada, por via do discurso oficial; ela dá-se, isso sim, por intermédio de cada um dos receptores da mensagem; serão eles (novamente, o Povo) a realizá-la, a materializá-la. Isto é especialmente eficaz até em termos de governação, no seu sentido mais estrito: o dividir para reinar é uma daquelas ratices seculares que nunca deixam de se actualizar. Mas não apenas: a dinâmica assim imposta e explorada actua ao nível paradigmático (define o ponto-de-vista a partir do qual o indivíduo vai interpretar a realidade) e é auto-regulada (define as suas próprias regras internas) e auto-restaurativa. De resto, parece claro que é a própria falência reiterada das medidas que acaba por justificar a sua perpetuação e mesmo o seu aprofundamento.

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Como qualquer outro mito, também esta estratégia político-discursiva assenta sobre um fundo de verdade. Quando apela à necessidade de se fazer os possíveis para controlar a propagação deste novo vírus, quando frisa a importância da Saúde Pública, quando realça a centralidade da responsabilidade individual, quando ameaça com o esgotamento previsível da capacidade de resposta do SNS - remete, de forma indesmentível, para coisas concretas e mais ou menos consensuais. Apenas branqueia outras responsabilidades e omite outros factores. Intencionalmente, claro está.

Estamos, de facto, perante uma falácia mal-intencionada e imoral. A confusão é muita, mas algumas coisas parecem claras. Há muito que a relação «risco de contágio-medida preventiva» se perdeu e um e outra se autonomizaram, como dois mundos que correm paralelos. A eficácia previsível de cada nova restrição ou norma está praticamente ausente do discurso político e público, secundarizada à insanidade por uma lógica de cópia do que se faz lá fora e por uma urgência (animada pelo circo mediático e pela realpolitik) de fazer alguma coisa.

(E quando, como no caso deste primeiro fim-de-semana de recolher obrigatório das 13h às 5h, se abre uma até aqui inédita circunstância jurídica (outra), receio que muitos pensarão, caso concluam pela ineficácia da medida, que o que se devia ter sido feito, que o que se deve fazer é mandar fechar tudo, sem meias-medidas. Isto é, o recolher obrigatório enquanto facto consumado torna mais familiar e aceitável (e, quem sabe, desejável) um eventual novo patamar, mais gravoso ainda, de restrição das liberdades cívicas.)

A um outro nível, ignora-se aquilo que é o comportamento típico de um vírus que se transmite de pessoa para pessoa. Nada de fundamental terá mudado nos comportamentos da generalidade da população entre os primeiros meses do desconfinamento (quando percorríamos, embasbacados, o famoso "planalto") e estas últimas semanas, em que a pressão dos números se acentuou. E, é preciso sublinhar, é esse, sem tirar nem pôr, o mote da declaração de Estado de Emergência, do recolher obrigatório e do tanto que tem sido determinado pelo Executivo. De resto, o Primeiro-Ministro foi taxativo quando apresentou estas últimas restrições: "os números falam por si, os números a isto nos obrigam". Passámos das medidas auto-explicativas aos motivos auto-explicativos.

Ora, é certo que a pressão sobre o SNS é crescente e preocupante e que os números de novos casos são impressionantes, sobretudo quando comparados com aqueles dos idos de Março e Abril. Mas importa ter em mente que confluem nesta época alguns factores que os enquadram e, até certo ponto, os explicam, como sejam o aumento assinalável da capacidade de testagem e a reconhecida incapacidade de rastreamento e mapeamento das cadeias de transmissão (a conjugação destes dois factores não pode dar coisa boa) ou a efectiva condição de saúde com que os mais vulneráveis a este tipo de males (doentes crónicos e oncológicos à cabeça) chegam a este Outono-Inverno, em função de um contexto de profundas e olimpicamente subvalorizadas ansiedade e depressão e, sobretudo, por força da tremenda quebra na assistência dos últimos meses (fruto, nunca é demais relembrar, simultaneamente de opções políticas de resposta à pandemia e do clima de Medo e tunnel vision gerado).

Não é dizer que estes factores explicam, por si só, porque há hoje tantos (?) novos «positivos» e tantos óbitos, mas não se pode, simplesmente, continuar a olhar este tipo de dado sem pelo menos ensaiar a sua contextualização.

(Deixei ali um ponto-de-interrogação junto ao "tantos" (em tantos positivos) porque não sei se a descrição é a mais certa. À data de hoje, segundo a DGS, são 217,301 os chamados «confirmados». Este número, que é cumulativo dos últimos 8 meses e meio, corresponde sensivelmente a 2% da população nacional. Dois em cada cem. Não estou certo de que haja consciência pública desta escala. Doutra maneira não se diria tantas vezes que "vamos todos apanhar, se é que não apanhámos já".

Ou então há e o que predomina é a lógica factual de que estes números se vêm somar àquilo que era já o universo da Procura do SNS. Mas não é possível ignorar que a larga maioria dos infectados com o novo coronavírus não chegam sequer a desenvolver a covid-19 (não chegam a ficar doentes). E, daqueles que efectivamente desenvolvem a doença, a grande maioria sofre apenas de manifestações ligeiras, tratáveis no domicílio. De resto, nunca tivemos tantos «activos» («confirmados» - [«recuperados» + «óbitos»]) e mesmo esses não chegam, hoje, aos 89 mil (menos de 1% da população nacional). E não se trata certamente de um problema de sub-testagem. O número total de testes já analisados e a percentagem de «positivos» face a esse mesmo número mostram-nos que esse problema já não pode ser levantado.)

Um aspecto particularmente significativo em todo este quadro pandémico é o da carga duplamente trágica e moral que ensombra e contamina tudo. Por um lado, vive-se a situação hiperbolicamente. O único dado objectivo que confere à crise pandémica uma efectiva carga de tragédia é pré-covid-19 - o da sub-orçamentação crónica e indecente do SNS. Poderíamos somar-lhe um outro, que nos leva ao âmago da crítica à gestão da pandemia - o dos danos colaterais, dos efeitos secundários (duas muito sofisticadas analogias aos cenários de guerra e à indústria farmacêutica) das opções político-mediáticas, com destaque, desde logo, para a elevada e ainda sobejamente desvalorizada taxa de sobremortalidade.

Por outro, vive-se a situação numa tendência moralizadora, estigmatizante. A um doente covid-19 não se reserva cuidado e benquerença, reserva-se distância e um sobrolho carregado - se apanhou é porque é leviano (o «leviano» de hoje é o «desconfinadinho» de ontem; e não esquecer o «negacionista»). Mas mais do que isso: esta doença, este vírus, são, em parte, um tabu - um tabu na medida em que estão socialmente vedados ao humor ou mesmo a uma abordagem mais ligeira e despreocupada. A covid-19 e o Sars-Cov-2 entraram directamente para aquela indesejada elite de temas que, para o actual quadro mental e cultural português, são incompatíveis com piadas. São daquelas coisas com que não se brinca.

O silêncio generalizado dos humoristas portugueses é, neste particular, muito ilustrativo. Sim, há humor relacionado com a pandemia. Mas não há humor (de grande difusão, pelo menos) com a pandemia. Faz-se humor com o inefável Marcelo e a sua postura numa entrevista a propósito da pandemia; faz-se humor com as erráticas instruções de António Costa em relação ao combate à pandemia; faz-se humor com a cobertura pseudo-jornalística da CMTV aos fait divers da pandemia. Mas não se faz humor como, por exemplo, aquele dos primeiros dois episódios do Diário de um Confinado, da Globo, em que se problematizavam humoristicamente as paranóias, excessos e hipocondrias características destes tempos.

Neste particular, o caso insular da Igreja Covidista dos Tempos do Fim (link aqui), sendo certo que não se confina (o termo vem a calhar) a uma dimensão estritamente humorística, é sem sombra de dúvida um exercício muito inteligente e hilariante.

Isto leva-nos a uma outra e muito rica área. As decisões e os ditos dos governantes são centrais a tudo  o que temos vivido desde Março. Mas igualmente centrais são os comportamentos e os ditos dos governados. Uns e outros têm estado, regra geral, em perfeita harmonia. O unanimismo em torno de tudo quanto tem sido decidido só este fim-de-semana, mais de 8 meses e muitas restrições depois, conheceu uma primeira brecha mais ou menos séria, com os protestos dos profissionais da restauração em Lisboa e no Porto (e mesmo isso requer reavaliação futura; o tempo nos dirá se os protestos não terão jogado contra os interesses daquela gente).

Muitas razões estarão na base desta mais do que aparente paz social. Dos (duvidosos) brandos costumes à educação cívica, do Medo à consciência colectiva, do respeito pelo princípio de Paz & Ordem à passividade sabuja, do pragmatismo socio-profissional à pura falta de opção. Gostava, porém, de me focar numa outra razão, quiçá menos nobre do que algumas, e que configura uma certa forma de oportunismo.

Para muitos, a pandemia foi sinónimo de uma nova realidade: o teletrabalho. A possibilidade de trabalhar a partir de casa, a que se somam outras formas de permanência remunerada no domicílio, umas melhores que outras, é certo (confinamento profilático, lay off, fecho de escolas e serviços públicos), veio de súbito tornar real um sonho compreensivelmente mantido durante anos a fio por um sem-fim de trabalhadores. Mais do que se ter tornado realidade (legalmente, materialmente, socialmente), este sonho fê-lo sob a forma de imperiosa necessidade sanitária e dever moral e cívico. Mesmo uma remota e vaga condição de doente de risco (do próprio ou dalguém próximo) é, além de vista como inatacável, passível de ser reconhecida e protegida com inédita facilidade. Vamo-nos acostumando à expressão: ela é de risco. Não é dizer, obviamente, que ter medo não seja a coisa mais natural nos dias que correm (nem um tal sentimento deve ser olhado senão com compaixão e empatia); muito menos se trata de não reconhecer certos direitos de preservação e prevenção a pessoas efectivamente fragilizadas e mais susceptíveis de virem a sofrer caso desenvolvam esta doença. Mas penso que todos vamos estranhando, aqui e ali, aquele excessozinho de zelo, aquela opiniãozinha direccionada, aquele subterfúgiozinho inopinado, aquele apelozito entredentes ao re-confinamento...

Enfim, nada mais natural. Quem, podendo, não preferiria trabalhar sem sair de casa? Mas daí a travestir uma mais do que justificada vontade de um posicionamento público conveniente (que tantas vezes passa por ser mais papista que o Papa; e que noutras tantas resulta em incoerências comportamentais que não abonam a favor de ninguém) só vem trazer confusão à confusão. E não é bonito.

Termino com uma ideia que de há muito tempo a esta parte me parece evidente e que assume vagamente a forma de corolário:

O quotidiano é incompatível com a covid-19.

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