A pandemia e a guerra nos canais de notícias 24-7. O trágico recuo da Empatia

Depois de dois anos inteiros de pandemia, três semanas inteiras de guerra. Esta interrompeu aquela, tomou-lhe o lugar de protagonista dos nossos quotidianos. A troca foi súbita e como que total: onde uma dominava, domina agora a outra; o espaço que uma, sozinha, preenchia, a outra o preenche agora, quase em exclusividade. Parece clara a correlação entre o silenciamento mediático da crise pandémica e o actual estardalhaço da guerra. Talvez não tivesse havido ainda uma suspensão tão duradoura e sobretudo tão efectiva da agenda pandémica enquanto facto diário como esta que a cobertura do conflito russo-ucraniano trouxe.

Trata-se, nem seria preciso dizê-lo, de dois fenómenos perfeitamente distintos na sua substância. E, no entanto, no que toca ao discurso e à sua feição mediática, ficam na retina alguns paralelismos importantes.

 

O «agora» como valor absoluto

Aquilo a que se chama a «informação televisiva» conheceu, com o advento e proliferação recentes dos canais especializados, de transmissão do tipo 24-7, uma transformação essencial. Se os noticiários são, nos canais abertos, líderes de audiências e, de par com as telenovelas e os programas de variedades que ocupam as manhãs e as tardes, pilares estruturais das grelhas – nisso demonstrando que a Informação é um produto rentável para o negócio televisivo –, o caso dos canais noticiosos do cabo (também eles, em geral, casos de sucesso) põe em jogo outras variáveis. Talvez que elencar algumas diferenças fundamentais entre um formato e outro ajude à compreensão da questão. Consideremos, dum lado, o formato do noticiário ao almoço/jantar, ou «emissão programada»; do outro, o formato dos canais especializados de informação em transmissão permanente, ou «emissão contínua».

Dalgum modo, a emissão contínua caracteriza-se, antes de mais nada, por uma expansão exponencial do espaço a preencher. Os blocos noticiosos das horas das duas principais refeições do dia nos canais generalistas correspondem, numa matemática simples, a 1/12 avos do tempo de transmissão que, usando a mesma matéria-prima, um canal especializado tem de encher. Dito doutra maneira, um canal de notícias tem de garantir muitíssimo mais conteúdo noticioso (até 12 vezes mais) do que um canal generalista. E, como diz a sabedoria popular, o que tem de ser, tem de ser, e tem muita força. O que nos tem sido dado assistir é que, de pés ou de cabeça, tem-se arranjado forma de garantir material e ter em antena, em permanência, conteúdos informativos (lá iremos ao «informativos»).

Mas a que custo é que as televisões têm conseguido dar resposta a tamanha exigência de conduto informativo televisionável? E de que forma é que têm tentado garantir a sustentabilidade deste modelo de negócio? Porque as redacções têm recursos limitados e porque uma efectiva cobertura jornalística no “terreno” é cara, exigem-se, necessariamente, sacrifícios. E duas coisas há que têm sido despudoradamente sacrificadas: a deontologia e a mediação jornalísticas.

A deontologia porque a tesão do imediatismo (lá iremos) manda às couves coisas como a audição das partes ou a verificação de versões e factos – o que, perversamente, com a nova moda dos programas de fact-checking, tem até dado azo à criação de mais conteúdos televisivos (nada se perde, tudo se transforma).

E a mediação porque o imediatismo, seu negativo, tem sido alçado – desde logo pelos próprios canais noticiosos – à condição de valor absoluto.

«Dar o agora» é algo que, claramente, vende bem e é algo a que o público reconhece um valor acrescentado. Haverá nisto uma parte daquele sentimento legítimo de «testemunhar a História a acontecer», outra parte de morbidez e voyeurismo menos recomendáveis, outra ainda de falta de massa crítica e finalmente outra, mais terra-a-terra, de falta de opção. Até porque, do lado da Oferta, é no «já» que se investe. O «já» prende a atenção e o directo é barato e rentável. Os canais especializados são disto exemplo acabado.

Assistimos, de resto, às mais apatetadas e tendencialmente degradantes formas de «dizer» o imediato – os ALERTA CM, os AGORA, os ESTÁ A ACONTECER, os ÚLTIMA HORA (que se apresentam já como uma forma clássica), os BREAKING NEWS (importação requentada da recém-chegada CNN Portugal) e o mais que um certo desespero vá inspirando aos desgraçados dos tipos dos grafismos, que botam tudo em letras garrafais e contra fundos pretos ou vermelhos, tudo muito berrante, tudo muito hiperbólico e imponderado. A Economia da Atenção tem aqui uma palavra.

A anulação da mediação, decorrente da pressa descabelada do «dar primeiro», é, no mínimo, um empequenamento da missão jornalística a uma função meramente mecânica, meramente técnica, de meramente «mostrar» algo que está a acontecer algures. E é, no máximo, como uma autofagia, pois a mediação jornalística – a identificação e selecção de acontecimentos, o enquadramento e contextualização, o confronto de versões e o apuramento crítico dos factos, o tratamento dos textos e imagens, a investigação que vai para lá do circunstancial e que escrutina o statu quo – é o fundamento ontológico, a razão-de-ser do Jornalismo.

Ora, num modelo de negócio que tem no imediatismo (ou numa sua ilusão, é preciso dizer-se) o seu suporte espectacular, a mediação jornalística fica gravemente espartilhada e comprometida. O formato dos telejornais das horas de almoço e jantar, em comparação, não padece deste mal, ou não padece dele no mesmo grau.

Muita coisa fica por dizer. Mas a dinâmica que aqui se descreve abre para um outro problema: o da parcialidade.

 

A parcialidade rentável

Como se viu, a emissão contínua coloca uma pressão tremenda sobre a produção. Neste ramo, como noutro qualquer, quem entra com o dinheiro quer ter previsibilidade no retorno e quer retorno asap. Os que conseguirem dar provas de maior rapidez e previsibilidade (e obviamente maior retorno em termos quantitativos) serão aqueles a quem mais dificilmente faltará financiamento. Numa época em que se sabe, em tempo real, o que é popular e o que não é popular, o que tem mais visualizações e partilhas e likes, é quase inevitável que, pragmaticamente, as televisões submetam os critérios jornalísticos a critérios doutra natureza – e que, numa palavra, se empenhem em dar aos espectadores aquilo que eles querem.

E o que «dá» o jornalismo? Num plano superficial, o jornalismo selecciona, recolhe e transmite informações tendencialmente objectivas e comprovadas sobre acontecimentos tidos por relevantes para uma dada opinião pública (que simultaneamente ajuda a construir, num movimento de influência recíproca). Num plano mais profundo, o que o jornalismo veicula nesse processo é uma visão de mundo. Ou melhor, o que resulta do consumo de conteúdos noticiosos (e aqui já será preciso ter em conta as especificidades de cada media) é uma dada visão de mundo.

Ora, é sabido que temos uma inclinação natural para ler, ver e ouvir aquilo que está em linha com o que já pensamos e sentimos de antemão; para ler, ver e ouvir aquilo que, por reproduzi-la, valida a nossa própria visão de mundo. Entre outras coisas, os algoritmos cada vez mais complexos (e sinistramente precisos) das webs assentam boamente neste princípio e o chamado «filter bubble» das redes sociais designa justamente os efeitos desta inclinação natural.

Assim, a maneira mais previsível de «dar aos espectadores aquilo que eles querem» corresponde a transmitir imagens e veicular informações que reproduzem, concordam e validam aquilo que será a visão de mundo da maioria, o que, por um lado, é inferível e rastreável na big data, e, por outro, é passível de reduzir a um conjunto circunscrito de visões simplificadas das posições possíveis num dado contexto.

Estas visões ou abstracções simplistas tendem a assumir, por facilidade e eficácia comunicacional, a forma dicotómica. O discurso mediático, em especial o televisivo e o das redes sociais – por um conjunto de factores onde necessariamente constará o imediatismo, mas onde igualmente marcará presença o que podíamos chamar de «efeito de consolo» (equiparável ao dalgumas grandes produções de Hollywood, que apresentam uma visão reconfortante do mundo, onde tudo é esquemático e inteligível e assente em oposições éticas) – parece resvalar sempre para uma polarização tendencialmente violenta e para um concepção maniqueísta dos acontecimentos e do mundo. Tudo é reduzido a um preto-e-branco enquinado e perigoso, mas muito bem arrumadinho e dalgum modo consolador.

No caso da pandemia, tudo foi sendo apresentado na forma de oposição elementar: fechar tudo ou deixar andar, confinar e isolar a eito ou não tomar uma única medida, aderir à vacinação ou ser negacionista, etc. Apostou-se também em massacrantes diários de números e gráficos descontextualizados e alarmistas e em painéis infindos de especialistas (médicos de Saúde Pública, epidemiologistas, matemáticos) – entretanto recambiados para algum canto sombrio dos estúdios.

E em tudo perpassou o papel explícita e voluntariamente didáctico e patriótico assumido pelas televisões, aliás encarnado de forma muito expressiva por alguns pivots da praça – e que um certo revisionismo em causa própria já vai, aqui e ali, fixando como meritório e exemplar.

No caso da guerra na Ucrânia, nota-se uma dinâmica análoga. Tende-se, não sem uma gritante dualidade de critérios relativamente a eventos passados (designadamente aqueloutras agressões militares, igualmente imorais e indecentes, perpretadas por Israel ou por forças da NATO), à pura diabolização da acção russa, personalizada em Vladimir Putin, o «novo Hitler», a qual desautoriza, desde logo eticamente, qualquer tentativa de racionalização – o que só abre, do lado de cá do ecrã, para mais confusão e ansiedade, opostos do «informar».

Correlatamente, tende-se, por simpatia e empatia, a uma heroicização da reacção ucraniana. À partida, nada mais natural: a defesa da soberania e da auto-determinação face a uma agressão deste tipo é algo que deve inspirar estes sentimentos. Mas o discurso mediático, nesta moldura pragmática, dramatiza tudo. E a Ucrânia surge já, infantilmente, como epítome e sinédoque de coisas como a Democracia (porque confusamente se liga a Rússia de Putin ao Comunismo), o Ocidente (e os seus supostos Valores) e o Bem (havendo um Mal, tinha de haver um Bem).

Os boletins diários da pandemia foram trocados por estimativas de refugiados; os especialistas médico-matemáticos foram trocados por antigos coronéis e embaixadores; as explicações sobre o comportamento de um vírus respiratório foram trocados por descrições dos impactos previsíveis de mísseis de longo-alcance.

Este jornalismo é hoje pró-Ucrânia como antes foi pró-#fiqueemcasa ou pró-vacinas, é hoje anti-Rússia e anti-Putin como antes foi anti- anti-desconfinadinhos. Porque isso rende mais.

Em suma, estes canais especializados de notícias em permanência são parciais. E são-no, como vimos, por necessidade e conveniência de um modelo de negócio que, doutra maneira, seria provavelmente insustentável. A parcialidade compensa: a mensagem sai mais escorreita, dá menos trabalho e sobretudo menos despesa.

Em sua defesa, dir-nos-ão estes jornalistas e directores que estão do lado «certo» ou que, em tempos de excepção (como os de pandemia ou os de guerra), a isenção jornalística deve ficar em suspenso, pois todos estão mobilizados para o combate – e que o combate deles é este, «contra o vírus» e «contra a guerra».

Enfim, a cada um caberá avaliar quanto dessas realidades se fica a dever, na sua forma pública e mediática, nos seus efeitos e repercussões sociais e políticas, ao discurso construído por estes canais.

 

A irracionalidade transversal e a negação do Outro

Um jornalismo que, enquanto modelo de negócio, se tornou dependente do imediatismo e da parcialidade levanta seriíssimas questões. Não é certamente preciso relembrar o carácter estrutural e civilizacional do chamado Quarto Poder (que, de resto, só vem a seguir aos outros três por motivos cronológicos).

Neste seguimento, detenhamo-nos em dois fenómenos, ambos observáveis tanto na pandemia como na guerra e ambos associáveis à dinâmica própria dos canais de emissão contínua.

Primeiro fenómeno: uma certa irracionalidade que é transversal a tudo. Na ânsia de captar e reter a atenção do telespectador, tudo é apresentado de forma hiperbólica e através da hiper-estimulação visual: mensagens «urgentes» em garrafais, cores contrastantes, rodapés em rotação infinita, múltiplos ecrãs em simultâneo, opinion-making em permanência. A isto se soma a pura erosão do tempo: o cerco (o circo) mediático prolonga-se por dias a fio e não dá tréguas.

A nota de histeria induz a neurose colectiva, a ininterrupção e a sobrealimentação informativa levam à saturação e à confusão, a direcção única impõe-se (impera a rapidez e a simplicidade da mensagem), a censura explícita surge como justificável (porque uma direcção única funda-se na exclusão de visões alternativas). Este complexo mediático funda-se na irracionalidade, que é, por exclusão de partes, a única forma de perpetuamente renovar o melodrama e a histeria que são a marca e o motor desta pseudo-informação.

Segundo fenómeno: uma dinâmica de negação do Outro. Tem início na elaboração (implícita, a mais das vezes) e aceitação de um «Eles» e de um «Nós» e prolonga-se, acto contínuo, como produto derivado, na caricaturização, na desumanização e, por fim, na negação do grupo que foi estabelecido como «Eles».

Durante a pandemia, todos constituíam um «Eles», um Outro, uma ameaça em potência, na medida em que todos podiam ser um condutor do vírus (a imprevisibilidade total inaugurada pela hipótese dos assintomáticos e pela incerteza nunca descontruída relativamente às formas efectivas de contágio terão sido as duas traves-mestras desta dinâmica). O inimigo comum era o vírus, é certo, e isso supostamente deixava todos ombro com ombro nesta “guerra” (a linguagem belicista foi marcante, bem como a intervenção destacada de militares). Mas o vírus podia chegar através de qualquer um, o que fragmentava e sobrepujava decisivamente essa união, ao invés justificando o controlo e a denúncia do vizinho e refluindo, por instinto primordial, num individualismo exacerbado. Em última instância, era o Outro que, irresponsável e inconsciente, quiçá negacionista, insistia em não cumprir as medidas (única razão para que o vírus não saísse de circulação) e perpetuava, por essa via, a ameaça pandémica.

A guerra trouxe-nos uma dinâmica diferente, porém relacionável enquanto negação do Outro. A Rússia de Putin reocupa o seu lugar histórico (voltaremos aqui) de um «Eles» que, enquanto inimigo comum mas sobretudo enquanto inimigo externo, promete voltar a colar todas as peças que a anterior pulsão individualista da pandemia escaqueirara. Há muitos anos que não se vivia um sentimento de tão grande união na União Europeia e, de forma mais ampla, no chamado Ocidente (isto a julgar pelos discursos dos seus líderes e pontas-de-lança). A invasão russa recuperou algum do sentimento de unidade civilizacional que a pandemia tão seriamente pusera em causa.

Mas o «Eles» que o Russo passou novamente a ser é – pasme-se – um fenómeno perverso. Por um lado, pelo misto de irracionalidade e obscurantismo com que o discurso mediático (aquele a que temos acesso, bem entendido) explica a acção militar russa: a Rússia é não mais que um Mal até aqui adormecido, Putin é pura e simplesmente um louco sanguinário e imprevisível, sendo sempre de temer o pior e o mais escabroso, desde conquistar meia Europa Central a lançar, por um capricho de psicopata, o planeta numa guerra nuclear que poria fim à Humanidade.

Ora, por mais que a agressão russa seja obviamente imoral e errada (porque nunca uma acção militar foi ou será outra coisa), nada justifica que, apesar do choque, não se tente olhar para este problema com alguma frieza e ponderação e não se tente entendê-lo à luz da História.

Por outro lado, este fenómeno do Russo enquanto «Eles» é perverso pelos efeitos colaterais da onda anti-Rússia/pró-Ucrânia, que leva tudo à frente. E nisso incluem-se cancelamentos de espectáculos de música porque o maestro é russo ou porque o repertório é russo; cancelamentos de colóquios de literatura porque o escritor que é objecto do encontro é russo; a perseguição de comunidades russas que vivem fora da Rússia; a interdição de canais russos; a suspensão individual de atletas russos (e bielorrussos) por múltiplas federações e organizações desportivas. Esta onda empurra-nos, enfim, para a negação do Russo enquanto cultura tolerável e legítima. Não são estes, certamente, os Valores do Ocidente que estão, por interposta entidade (Ucrânia), sob ataque na frente russa.

E aqui convirá talvez retornar ao que chamei de “lugar histórico de inimigo externo” a que a lógica da Guerra Fria votou a Rússia. Dos pontos de vistas geográfico, artístico, científico, histórico (recordem-se os desfechos das invasões napoleónicas e hitlerianas), económico e mesmo religioso, a Rússia não é senão europeia – e, em muitos desses campos, da vanguarda europeia.

Neste sentido, a divisão Rússia-Europa tem, mesmo considerando o passado recente, muito de artificial. Os equilíbrios mundiais e, em particular, a hegemonia norte-americana, dependem desta divisão. Imagine-se o que seria uma união Rússia-Europa (aliás ensaiada por Putin no início da sua liderança, inclusive dando passos para uma adesão à NATO) e o que significaria em termos económicos e geopolíticos – com autonomia de recursos em várias áreas, com uma força militar independente do complexo norte-americano, com fronteiras com todos os grandes protagonistas da cena mundial, com um mercado interno ainda mais alargado e representando uma extensão gigantesca de território sem conflito.

Uma utopia, por certo. Mas vem isto a propósito da ostracização de tudo quanto é russo e que, nos dias que correm, se confunde com uma tomada de posição ao lado do povo ucraniano. Aliás, estamos quase no ponto em que, se não se juntou alimentos ou dinheiro para enviar para a Ucrânia, é-se por inerência favorável à invasão russa. O nível de boçalidade primata a que se reduziu grande parte da comunicação social (não toda, só a mais influente) faz com que este tipo de associação seja muito mais do que um mero exagero de retórica.

 

«The medium is the ma/essage»

“As sociedades foram sempre mais moldadas pela natureza dos meios de comunicação através dos quais os homens comunicam do que pela substância dessa comunicação”. *

“Todos os meios de comunicação nos exaurem. Eles são de tal maneira intrusivos nas suas consequências pessoais, políticas, económicas, estéticas, psicológicas, morais, éticas e sociais que não deixam qualquer parte de nós intocada, desafectada, inalterada. O meio é a massagem. A compreensão de qualquer transformação social ou cultural é impossível sem um conhecimento da forma como os meios de comunicação funcionam enquanto ecossistemas.” **


Se a agenda mediática da guerra russo-ucraniana veio substituir, quase na íntegra, a agenda pandémica, o mesmo não se verifica quanto aos efeitos específicos de uma e outra sobre a massa de telespectadores – que são, em simultâneo, eleitores, contribuintes, educadores, trabalhadores, cidadãos. Esses efeitos, num movimento de constante adição e multiplicação, justapõem-se e contaminam-se. Não será possível, em rigor, descrever-lhes as feições e o alcance, mas nenhum cenário que se trace será particularmente animador.

Um meio de comunicação não é nunca um canal neutro de uma dada mensagem. Seguindo o pensamento de Marshall McLuhan (que citamos acima), a mensagem (o seu conteúdo, a sua substância) não é, em nenhum sistema de comunicação, o elemento primordial e determinante. Neste seguimento, a mensagem é sempre secundarizada pela sua mediação (o discurso, a natureza e as especificidades do media). O que se diz é – na dinâmica comunicativa e sobretudo na transmissão e construção de sentido (em última análise, na transmissão e construção de uma visão de mundo) – menos determinante do que o meio através do qual é dito. Isto é, a mediação da comunicação entre os homens é um fenómeno que tende a sobrepor-se ao seu próprio objecto.

No limite, as crises pandémica e ucraniana seriam outras (e teriam mesmo outros efeitos e consequências) se o media fosse outro. A centralidade dos canais especializados de notícias nestas duas crises afigura-se-me indesmentível. Se cruzarmos estas duas premissas com o carácter da acção jornalística destes canais – reféns do imediatismo e da parcialidade –, o resultado não será nunca algo de desejável e moralmente elevado.

Urge estar alerta para esta realidade.

Fechemos com um comentário que nos leva de volta ao princípio: há paralelismos entre a cobertura da pandemia e a cobertura da guerra. E os efeitos de uma e outra mantêm também entre si alguns paralelismos.

A saber: os sentimentos de confusão (face ao que se testemunha e ouve), de ansiedade (face ao que está em curso e o que se lhe seguirá) e de saturação (face a tudo); um cepticismo manhoso, um “já não sei em que acreditar”, que se instala e que parece ter origem no que chamei de sobrealimentação e hiper-estimulação do que por vezes assume a forma de um verdadeiro cerco mediático; e, ligado à radicalização postiça dos temas e à sua simplificação excessiva e injustificada, a negação do Outro, ou o trágico recuo da Empatia.


_________ 

* Marshall McLuhan, The Medium is the Massage, Gingko Press (1996), p. 9. Tradução livre; no original: “Societies have always been shaped more by the nature of the media by which men communicate than by the content of the communication.”

** Idem, p. 26. Tradução livre; no original: “All media work us over completely. They are so pervasive in their personal, political, economic, aesthetic, psychological, moral, ethical, and social consequences that they leave no part of us untouched, unaffected, unaltered. The medium is the massage. Any understanding of social and cultural change is impossible without a knowledge of the way media work as environments.”

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