Tunnel vision

Há seis meses atrás era anunciada a primeira morte por covid-19 em Portugal. Esse fúnebre marco surgiu como a espectacular apoteose de semanas de um crescendo de pânico e histeria mediático-colectivos. As notícias chegadas de Itália, primeiro, e Espanha, depois, de par com uma tremenda avalanche de pseudo-informação relativa ao novo coronavírus, foram um combustível suficientemente potente - e o fecho-de-tudo foi ganhando a forma de algo inadiável & incontornável. Recordo-me, por exemplo, de ter tido um colega de trabalho a dizer-me que o actual executivo governamental teria de, no futuro, responder pelos "milhares de mortes" que aí vinham - e isto simplesmente porque não tinha, nessa tarde, dado a esperada ordem de fecho das escolas. Essa delicada decisão apenas viria a ser tomada na tarde do dia seguinte. Mas vinte e quatro horas, nos idos de Março, tinham o peso de anos.

Já então se impunha, de forma bastante evidente, a dinâmica que marca decisivamente toda a sorte de análises e tomadas de decisão relativamente a esta pandemia: aquilo a que em língua inglesa se designa por tunnel vision. A visão em túnel caracteriza-se, clinicamente, pela perda da visão periférica. No caso vertente, o fenómeno observado foi o da perda da visão de conjunto. Como num distúrbio ocular, todos os olhos (mesmo todos, sem diferenciação sócio-profissional) passaram a estar estritamente, obsessivamente, irracionalmente fixados no novo vírus. A existência de tudo o resto perdeu substância. E isso facilitou sobremaneira o seu metódico e tenaz sacrifício.

Este fenómeno manifestou-se, desde logo, sobre os velhos, protagonistas maiores, ironicamente ou não, dos chamados "grupos de risco". A descrição que um amigo me fez da visita que fez à mãe no lar onde de há uns meses a esta parte a senhora vive indignou-me particularmente: isolada para lá de uma grotesca placa de acrílico que lhe fechava a divisão onde a haviam deixado, à hora marcada, para os 30 minutos regulamentares da visita do filho - que, de resto, teve de se manter, apesar do aparato, distante e sempre de máscara -, a pobre mulher apenas soube chorar o tempo todo.

Mas, dir-me-ão - Foi para sua protecção.

Ou perguntar-me-ão, como aliás tantas vezes me têm feito - Então e qual era a alternativa?

A visão em túnel é isto mesmo: as medidas de protecção contra o contágio pelo novo coronavírus sacrificam radicalmente todas as outras condições ligadas à saúde e ao bem-estar, mas não há, aparentemente, consciência disso; e, o que é notável, são percepcionadas como inevitáveis.

Quando, ingenuamente, devolvo a pergunta e questiono se não seria possível procurar um meio-termo entre a ausência absoluta de novas recomendações e este absurdo novo normal, o que em regra me é dito é - E como é que garantias que as pessoas cumpriam?

Este tipo de conversação deixa-me encurralado. Claro que não vou defender o indefensável - sou o primeiro a descrer das qualidades cívicas da grei. Eis-me, portanto, num beco (ou melhor, eis como me tenho metido em um). Para completar a imagem, falta dizer que, pela frente, tapando-me a saída, encaro com uma inamovível massa de certezas sobre a necessidade imperiosa de impedir um (1) novo contágio. Custe o que custar. Se for preciso, lê-se-lhe nas entrelinhas, isolaremos profilacticamente a mãe do teu amigo até que dois-terços da população esteja vacinada, nem que isso leve mais um ano.

O caso de Reguengos de Monsaraz ilustra bem até que cúmulos podem ir os efeitos desta tunnel vision.

Seja como for, não terei tempo ou oportunidade para dar dois passos atrás e questionar o nexo de algumas das medidas impostas face às formas conhecidas de contágio, ou referir-me à predominante amenidade das manifestações observadas nos que efectivamente sofrem de covid-19 ou, ainda, sublinhar a baixa taxa de letalidade da doença.

Antes que consiga fazer qualquer tipo de disclaimer ou contextualização relativamente a estas despretensiosas objecções, dir-me-ão, respectivamente, que - Ainda não sabemos bem como é que o contágio é feito, que - Então e se o SNS ficar entupido?, que - Queria ver se fosse um familiar teu.

O factor «indefinição» é capital em tudo isto. No limite, "não sabemos nada". Isto é dito assim, na primeira pessoa do plural. E é seguido, muitas vezes, pelo seu corolário: "nem eles sabem muito bem". Este "eles" designa vagamente os cientistas, os especialistas, os responsáveis (supõe-se). Este factor é particularmente importante na estrutura de toda esta narrativa porque, desde logo, tem uma base de verdade: conhecer-se a fundo o comportamento de um vírus leva muito mais do que seis meses. Mas é também algo que vai bem com uma certa preguiça mental que caracteriza a generalidade das pessoas, sobretudo em assuntos que se prestem à maledicência, à moralização e ao julgamento do Outro. E é ainda algo que, bem entendido, só é instável na essência; na forma, é um factor de apreciável imutabilidade. A «indefinição» está presente desde o início. Sólida como uma rocha, ergue-se como um dos poucos elementos consensuais em toda esta confusão.

Em contraponto, a noção científica de "conhecimento actual" é vista como uma manha de político, como um conceito apenas usado ao sabor das conveniências e circunstâncias. E isto apesar de o "conhecimento actual", revisto e actualizado pelos principais agentes de saúde pública portugueses e internacionais, apontar, consistentemente e ao longo do tempo, sempre as mesmas formas de contágio e sempre as mesmas recomendações de higiene e segurança. Mas isso é muito menos cativante do que uma boa indefiniçãozinha.

Outro factor omnipresente é o do risco de «entupimento do SNS». Duas coisas a este propósito: uma, que essa é, desde há anos, a condição do SNS (veja-se o que acontece ciclicamente nos picos de gripe, por exemplo); outra, que, de Março a esta parte, não foi dado um passo que fosse no sentido de reforçar a sua capacidade de resposta.

Sobre a «questão pessoal», o «e se fosse um familiar teu», etc., apraz-me dizer apenas isto: a crítica a um assunto não pode depender do seu impacto efectivo na vida pessoal daquele que a esboça. A crítica quer-se desenvencilhada, desinteressada, honesta, empática por vocação e princípio.

Os impactos deste fenómeno de massas de tunnel vision, observável nos mais diferentes níveis da sociedade - do institucional ao individual, passando pelo mediático (importa, contudo, frisar que cada um deles é gerado por diferentes motivos) -, pela sua escala, abrangência, intensidade, ineditismo, são imensos e potencialmente de longo-prazo.

O rol de áreas sociais profundamente afectadas é tão extensa quanto preocupante. Das liberdades cívicas (seriamente restringidas) aos cuidados hospitalares (suspensos) e à saúde mental (ignorada), passando pela economia (em recessão histórica) e pelas relações sociais (o individualismo revigorado), são tremendos os efeitos deste estranhíssimo unanimismo mundial, desta intrincadíssima dinâmica, que, mais que meramente sanitária, é político-mediática.

De resto, quanto deste fenómeno se deve à acção dos vários meios de comunicação social? Além de tudo o mais, a apresentação exclusiva de números absolutos de mortos e infectados ou a ausência de uma relativização ou enquadramento desses números face a outros totais nacionais e mundiais não parecem totalmente inocentes.

Assistimos, aparentemente, a uma concertação mediática do medo.

Hoje (15/09/2020) tem início um novo período de Estado de Contingência. Pré-anunciado com bastante antecedência, abrange todo o território e confere ao Executivo um amplo conjunto de mecanismos legais e institucionais de controlo social e económico. O seu anúncio e implementação foram acolhidos com um bem português misto de passividade e fleuma. Dir-se-ia que a desconfiança na grei tem correlacção directa com a confiança no Governo.

Fará, então, sentido tirar uma fotografia do «ponto de situação» neste dia.

O número de pessoas actualmente doentes com covid-19 em Portugal (os chamados "activos") é de 18,784. Aproximadamente 0,17% da população nacional.

Já foram realizados mais de 2,2 milhões de testes. Desses, só cerca de 65,000 deram positivo ao novo coronavírus. Os chamados "confirmados" representam, assim, aproximadamente 2,85% das amostras.

A nível global, este é o quadro-síntese (abaixo). Junto uns sublinhadozitos a amarelo.

Para enquadrar um pouco os números, o actual número de óbitos associados à covid-19 representa cerca de 2,25% do total mundial de óbitos já ocorridos este ano.

Calcula-se que, em média, a gripe sazonal mate por ano até cerca de 650,000 pessoas em todo o mundo (link). Falamos, note-se, de um vírus conhecido há décadas, contra o qual existe uma vacina eficaz e amplamente ministrada em inúmeros planos nacionais de vacinação há vários anos. Mais, falamos de uma metodologia de contagem diferente (mais restritiva) daquela que tem sido feita em vários países relativamente à actual pandemia. Finalmente, falamos de uma doença sem importância social, profissional ou mediática.

Há mais de 42,1 milhões de diagnosticados com VIH-SIDA em todo o mundo, que só este ano já matou perto de 1,2 milhões de pessoas.

As várias formas de cancro já mataram, este ano, mais de 5,8 milhões de pessoas ao nível planetário.

Enfim, apenas alguns números - que surgem aqui na tentativa atabalhoada de ajudar a elaborar uma visão de conjunto.

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