Lembro-me que

O último número da Ler tem na capa, no canto superior direito, o seguinte aviso:

NÃO FALAMOS DE CORONAVÍRUS.

Percebo-lhes o sentido e a graça e toma-me por instantes um certo sentimento de comunhão. De facto, nos dias que correm, não se fala de outra coisa. E «falar» é o verbo certo. Bem entendido, pouco se conversa sobre este tópico. «Conversar», no caso vertente, pretende remeter para uma dinâmica moral e intelectualmente honesta de reflexão, de contraditório, de partilha. A dinâmica corona-virulística não é, objectivamente, essa. A reflexão é escassa e afectada, o contraditório idem. A partilha de ideias e vivências, essa, simplesmente não tem lugar. Literalmente, não tem lugar.

O tema presta-se a polarizações. É complexo – e não há tempo nem paciência para analisar e conversar acerca de temas complexos. Pertence a um domínio técnico que poucos dominam – e portanto muitos conceitos-base são mal compreendidos. Foi açambarcado pelos media, que viram nisto uma tábua-de-salvação da indústria – e então tudo têm feito, e continuarão a fazer, para manter vivo o lume. É um problema de Saúde Pública – e, por isso, implica sistemicamente a comunidade como um todo e articula lógicas comportamentais com e do Outro que se prestam a inúmeras confusões. É um fenómeno que, pelas suas características, se quer combater por antecipação e não por reacção – o que coloca os decisores políticos e sanitários perante dificílimas questões. E a lista continua. Mas o que importa, por ora, é isto: o tema presta-se a polarizações.

Há uns dias atrás assinalou-se o septuagésimo-quinto aniversário da criminosa tragédia de Hiroshima. Kazumi Matsui, mayor daquela cidade, deixou um alerta que faz a ponte entre aquele Passado e este Presente:

O objecto deste alerta parece tudo menos alarmista ou despropositado. Assistimos, nos últimos cinco meses, a um número crescente de decisões políticas e movimentos espontâneos que apontam justamente a este perigo. A reacção a esta doença deitou já por terra anos e anos de convenções internacionais e progressos civilizacionais no que toca à livre-circulação de pessoas e bens um pouco por todo o Mundo, com sucessivos e reiterados fechos de fronteiras, ora totais, ora direccionados especificamente a certas nações, além de outras medidas de profunda restrição das liberdades individuais. Por cá, a fronteira com Espanha esteve já encerrada durante algumas semanas e houve inclusive uma proibição de circulação entre municípios. Os governos regionais da Madeira e dos Açores têm insistido em ordens de isolamento coercivo gritantemente inconstitucionais. A lista de proibições, suspensões e imposição de restrições é imensa, sendo particularmente preocupante no que diz respeito ao acesso aos cuidados públicos de Saúde e na fruição de lazer em espaços de acesso livre e universal, como praias, jardins ou estabelecimentos de restauração. Dir-me-ão que tudo é temporário e que tudo está estritamente dependente da actual situação e que, além do mais, é perfeitamente justificável e necessário. Muito bem. Mas estamos perante decisões seriíssimas, até aqui impensáveis, que só um contexto de medo e confusão generalizadas e uma opinião pública de contornos muito especiais poderiam comportar e acolher. Esse quadro psico-social, político-institucional e mediático instalou-se e não mostra sinais de desarmar. E é ele tal que, nas circunstâncias certas (erradas), poderá tornar o apelo de Matsui uma realidade subitamente, dramaticamente premente.

A Ler quis deixar claro aos seus leitores que não falava de coronavírus. Eu achei-lhes uma certa graça porque de há uns meses a esta parte que não se fala senão de coronavírus. Mas será tanto assim? Não é certo. Ao longo deste mês, foram várias as capas de jornal onde não houve uma única chamada a este tema. Enfim, passámos provavelmente por um período de um arrefecimento relativo do alarme social. Receio que, antes de um mês volvido, estejamos perante uma renovada onda de paranóia e histeria mediáticas. Seja como for, o cansaço que está implícito na piada da Ler é algo que, dentro das nossas possibilidades, devemos combater. A massa crítica em torno deste fenómeno é já dramaticamente precária e o seu potencial distópico é palpável.

No Público de ontem, Ferreira Fernandes recuperou algumas ideias a propósito do seu Lembro-me que, livro onde, como antes o haviam feito Georges Perec e Joe Brainard, a partir da repetida preposição «lembro-me que» e em frases curtas, o autor regista memórias pessoais, impressivas e banais: “bocadinhos do seu quotidiano”. A proposta é interessantíssima e mereceria certamente outra atenção. Mas cito-o apenas como modelo.

Então aqui vai.

Lembro-me que o A. pendurou um rolo de papel-higiénico na fita do cartão da empresa.

Lembro-me que o V. ficou fechado no carro, numa rua perto de casa onde costuma estacionar, entre as cinco da tarde e as dez e meia da noite, à espera que a filha adormecesse e fosse para a cama.

Lembro-me que uma mulher de seus cinquenta anos virou ostensivamente a cara para o lado e para baixo quando passou por mim e pelo F. no corredor dos shampoos do Intermarché de Mafra.

Lembro-me que uma tia da R. foi enviada pela filha para casa de uns familiares de Santarém, onde ficou isolada num quarto durante alguns dias.

Lembro-me que os Bombeiros de Mafra andaram a circular em marcha-lenta num auto-tanque pelas ruas da vila enquanto passavam uma mensagem nos altifalantes.

Lembro-me que um tipo ficou a observar-nos fixamente de uma varanda sobre o parque de estacionamento enquanto nos cumprimentávamos com beijos e abraços.

Lembro-me que...

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