Nova entrada de diário

Reli há pouco o que escrevi a 21 de Junho. "Como é que vamos sair disto?", questionava. A pergunta mantém-se viva, latejante, em mim. Como é que vamos sair disto? Que sociedade, que ordem? Que marcas, que transformações?

Pouco tenho a acrescentar ao que escrevi. Estamos a chegar ao final da primeira semana de Agosto e, se alguma coisa há que me fique na retina, é que aquele texto me parece hoje muito menos assustadiço do que então me pareceu. Estar afectado assim como estou é talvez uma manifestação de lucidez, mais que de uma especial sensibilidade. Enfim, digo isto para me convencer, para me apaziguar. Porque é muito, muito chato (a palavra que me vem sempre à cabeça é «chato») manifestar a minha posição, a minha visão de tudo isto. É-me penoso («penoso» diz melhor) sustentar a posição que assumi. Aborreço os outros e desgasto-me a mim. Tanto que, de há umas semanas a esta parte, mal o faço. Seja como for, fala-se cada vez menos acerca deste corona-vírus (há pouco mais dois meses ainda se dizia "o novo corona-vírus"). E fala-se cada vez menos porque estamos já num novo normal. É banal dizer-se isto - «estamos já num novo normal» -, mas o sentido profundo desta frase é perturbador. A impressão que se me vai impondo é a de que as medidas de restrição social se autonomizaram face ao combate à pandemia que as motivou. O carácter ritualístico, não-lógico, com que o crescente número de recomendações de controlo e higiene foi sendo acolhido permitia já antever esta evolução. A ligação causal entre a desinfecção das mãos ou o uso de máscara e os riscos concretos (e conhecidos) de contágio parece hoje muito ténue. Faz-se e usa-se porque sim. Por costume. Por convenção. Sem relação racional ao risco e ao benefício concreto de cada circunstância. Mais do que ao movimento em si, importa estar atento ao seu significado.

Entretanto, a Madeira impôs o uso generalizado, constante, de máscara. A não-utilização tem um quadro de coimas e punições específico. Em que medida é que podemos não ver isto como um abuso de poder? Estas decisões são-nos apresentadas num crescendo cumulativo que se auto-reforça e auto-justifica. A comunicação social constrói, dia após dia, um conjunto de pequenas narrativas que obedecem a esse princípio. A imposição madeirense é-nos apresentada juntamente com o regresso às antigas restrições catalãs e em contraponto à "situação dramática" do Brasil e dos EUA. A obrigatoriedade do uso de máscara na Madeira não será interpretada enquanto fenómeno de um dado contexto temporal e geográfico específico - que se desenvolve num certo enquadramento político e jurídico, que se insere numa dada realidade sanitária e epidemiológica, que surge num certo panorama demográfico e climatérico. A obrigação madeirense do uso constante de máscara será lida à luz do mais que outros responsáveis políticos, de outras regiões do globo, vão decidindo. E isto é dizer que os casos que as televisões optam por apresentar antes e depois do desenvolvimento madeirense tem impacto na sua recepção. Essas escolhas traduzem um posicionamento e constituem a referida construção narrativa diária.
Por outro lado, esta dinâmica anula a especificidade inequívoca de cada caso. Tudo nos chega atomizado. A decisão catalã surge-nos desligada do seu fundo histórico, da sua especificidade geográfica, demográfica, social. Os casos brasileiro e norte-americano idem. Tudo fica sujeito a uma neutralização, como se todos os sítios do planeta, todos os decisores políticos, se encontrassem na mesmíssima situação, partissem do mesmíssimo ponto-de-partida, decidissem com base nos mesmíssimos pressupostos, tivessem de reagir às mesmíssimas circunstâncias e com as mesmíssimas ferramentas.

Em contra-ciclo, o Tribunal Constitucional acaba de declarar que as quarentenas impostas pelo Governo regional dos Açores (e, por arrasto, da Madeira) a todos os que chegam àquele(s) território(s) são inconstitucionais. Esta avaliação toma a forma de uma racha que se abre no monólito acrítico do vale-tudo em tempos de guerra pandémica.
Enfim, veremos.

Outro aspecto significativo é o da auto-censura entre os profissionais do comércio. Nenhum comerciante que ainda alimente a esperança de retomar a sua actividade se pode dar ao luxo de criticar as medidas sanitárias governamentais. Nas actuais circunstâncias psico-sociais (pandemia) e no quadro mediático dominante (redes sociais altamente inflamáveis e televisões desesperadas), nunca serão suficientemente claros se se ensaiarem ao despautério de pôr em causa alguma das restrições e recomendações das autoridades. O risco é claro: a crítica perde-se na tradução e o estabelecimento fica com a indesejável fama de "muito desconfinadinho". Sob a ameaça latente desse pseudo-escrutínio, os comerciantes reagem: é hora de ser mais papista que o papa. Se a DGS determina dois metros, guardem-se três entre as mesas. Se é para usar máscara, bote-se máscara, viseira e cubra-se tudo de placas de acrílico. Se só podem estar cinco pessoas na sala, deixe-se entrar só uma; as mais que esperem à porta. Cada dono de café, de mercearia, de salão de estética vai querer mostrar-se à comunidade com o maior dos escrúpulos possível. E se isto foi mais verdade no início do desconfinamento do que é agora (em que a erosão natural do dia-a-dia leva ao relaxamento das novas práticas), nem por isso os comerciantes deixam de se auto-censurar. Assim se amordaça uma parte muito relevante dos agentes económicos do país, quiçá os mais directamente afectados por tudo isto.

E por aqui me fico. Hoje foi menos diarístico, mas nem por isso termino com outra reflexão: tomara ter alinhado com toda esta loucura desde o primeiro dia.

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