Covid-19 e a sobremortalidade

Há pouco mais de duas semanas, o INE publicou um boletim intitulado "A mortalidade em Portugal no contexto da pandemia COVID-19 - semanas 1 a 35". O resumo e o documento propriamente dito estão disponíveis para consulta aqui.

O estudo incide especialmente no período compreendido entre o dia 2 de Março, data do primeiro óbito por covid-19, e 30 de Agosto. A sua principal conclusão é a de que, neste lapso temporal, se verificaram mais 6312 mortes face à média do período homólogo nos últimos cinco anos. Destas, 1822 ficaram a dever-se à pandemia.

O número total de óbitos neste período foi de 57971.

Temos, assim, que:

  • a covid-19 explica 28,8% da sobremortalidade deste período
  • a covid-19 representa 3,14% do número total de óbitos neste período
  • o número médio diário de óbitos neste período foi de 320 óbitos/dia
  • o número médio diário de óbitos por covid-19 neste período foi de 10 óbitos/dia

Este boletim traça também uma linha de evolução no tempo em relação a estas diferentes variáveis. Saltam à vista dois sub-períodos, que dividem estas 25 semanas praticamente ao meio: um primeiro, entre as semanas 13 e 25; e um segundo, daí em diante.

Naquele, a covid-19 tem um peso relativo importante na sobremortalidade calculada, sobretudo nas semanas 14 a 19, coincidentes sobremaneira com o período de Estado de Emergência (ver segundo gráfico).

Neste último, a covid-19 tem, no mesmo índice, uma importância residual.


Importa sublinhar um outro dado identificado neste documento: neste período, o número de óbitos fora do contexto hospitalar foi, em média, superior aos 40%, num excedente estimado de 4617 óbitos.


Noutro ponto, é feito um sublinhado à semana de 16 a 23 de Março, quando este valor ascendeu aos 46,1%. Segundo dados gerais de 2008, citados por Walter Osswald no seu ensaio Sobre a Morte e o Morrer (FFMS, 2013), o número de óbitos em ambiente hospitalar superava consistentemente os 60% (no que traduzia uma inversão da realidade nacional - em meados dos anos 1980, a distribuição geo-tipológica era de ~60% de óbitos no domicílio).

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Qualquer dado estatístico deve ser interpretado com muita prudência. A «sobremortalidade», que se define pela comparação com registos médios passados de um dado lapso temporal, merece certamente uma análise muito cautelosa. A Morte é um evento que, naturalmente, não se compadece com tendências ou médias ponderadas. E, no entanto, basta uma consulta rápida aos números da mortalidade em Portugal dos últimos anos para se ficar com uma noção de que se verifica uma notável (e a todos os níveis perturbadora) estabilidade quantitativa ao longo do tempo e de ano para ano naqueles que são os critérios e categorias comummente utilizados neste domínio. Enfim, esta variante vale o que vale - o que importa é manuseá-la com um mínimo de honestidade intelectual.

Dito isto, importa notar um par ou dois de coisas.
Primeiro, que o período estudado apresentou uma variação significativa da mortalidade face à média dos cinco anos anteriores - superior a 12%. Ora, este período foi historicamente condicionado (ou mesmo determinado) pela pandemia. A associação entre a pandemia (o fenómeno total) e esta variação tem de ser feita. Vemos que, directamente, a covid-19 foi responsável por menos de 30% da sobremortalidade. A que se devem, então, os mais de 70% que sobejam?
A resposta não será simples. O relatório do INE faz uma breve referência a outros factores, como a gripe sazonal ou os picos de frio e calor. Mas esses factores são uma constante, não uma excepção. Um dado que salta à vista é a distribuição cronológica e quantitativa da sobremortalidade. Os gráficos acima ilustram de forma clara que a sobremortalidade covid-19 foi perdendo relevância relativa a partir de meados de Junho, fruto provável de seis a oito semanas de implementação das medidas de combate à pandemia (com destaque para o Estado de Emergência e para o shut-down geral). De resto, os números covid-19 das últimas dez semanas analisadas estão quase em linha com a média 2015-19 - isto é, estão no limite do conceito de «sobremortalidade». Daí se pode inferir que, do ponto de vista do combate estrito à pandemia, as medidas tiveram efeitos positivos (verificou-se uma evolução análoga noutros critérios, como o número de novos casos ou internados).
Mas e o resto? Só nas semanas 29 e 30 registou-se, face ao período-referência, um excesso de +1350 mortos. O mês de Julho foi marcado por ondas de calor - isso mesmo é sublinhado no boletim. Mas uma sobremortalidade superior a 1350 pessoas em duas semanas representa um aumento que se aproxima das 100 pessoas/dia em comparação com um idêntico período de Verão. O que é tremendo.

Hoje mesmo (escrevo esta parte a 8/10) ouvi o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, quando questionado sobre o recente aumento de novos casos, afirmar que os hospitais adoptarão o mesmo "plano de contingência" do início da pandemia: a suspensão progressiva da actividade assistencial programada. A actividade programada ou electiva inclui consultas, tratamentos e cirurgias não-urgentes. É público e notório que este tipo de assistência se caracteriza há anos por atrasos sistemáticos que vão bem além de toda e qualquer recomendação médica e que a larga maioria dos seus destinatários são doentes crónicos (ironicamente "grupo de risco" no quadro da pandemia). Os efeitos potenciais deste plano de suspensão são claros para qualquer pessoa. Foram muitos os profissionais e especialistas que, nas últimas semanas, alertaram, não apenas para os riscos associados, mas principalmente para as consequências dramáticas que já são perfeitamente visíveis.
Nos idos de Março e Abril foi isto que se passou. Acresceu então (como agora, aliás) um outro elemento: o do desencorajamento (simultaneamente mediático-institucional e reflexivo, espontâneo - por Medo) do recurso aos Serviços de Urgência hospitalares.
Aqui chegados, será abusivo ligar o contexto concretamente criado pela gestão da pandemia à sobremortalidade verificada, sobretudo após a fase inicial deste novo-normal? Quais os efeitos da suspensão da actividade assistencial e do desencorajamento (à falta de termo melhor) do recurso às Urgências? Recorde-se que, em Março, a quebra na ida às Urgências rondou os 45% - valores que ultrapassam largamente o fenómeno dos «pulseiras verdes».
O aumento dos óbitos fora do ambiente hospitalar é um dado que pode estar associado a esta dinâmica e que pode ser mais uma consequência do quadro actual.

Num esforço de síntese, a interpretação dos dados apurados neste boletim do INE leva-me aqui:
  • as medidas de combate à covid-19 terão estado na origem de até 2/3 da sobremortalidade verificada face à média do período homólogo dos últimos cinco anos;
  • o número médio diário de mortes por covid-19 é irrelevante face ao número total diário de mortes & o número de mortes por covid-19 é irrelevante face ao número total de mortes.
Estes três tópicos, por sua vez, levam-me aqui (respectivamente):
  • só uma agudíssima e socialmente transversal dinâmica de tunnel vision pode,
    • por um lado, gerar um quadro destes e,
    • por outro, acomodar ao invés uma ainda palpável disposição geral para o reforço desta mesmíssima dinâmica;
  • só uma lógica de criação e manutenção de uma narrativa de Medo (rentável e de baixo risco) pode explicar aquilo que tem sido a actuação da generalidade das instituições do Poder e dos meios de comunicação social.

Isto é tudo muito cansativo.

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