A beleza muda do gostar

Quando aqui chegaram aqueles dois o sol esquentava estas mesas e estas cadeiras debaixo deste telheiro de madeira que prolonga esplanadamente o telhado deste café onde sempre se ouve atirada da rádio música de duas pequenas colunas dependuradas acima da vista e onde, como em regra acontece nos assuntos vários da vida, nem todas as cadeiras e mesas são fornecidas da mesma fortuna, no caso o conchego morno e luminoso deste astro magnífico que pouco se importa se é já outubro entrado ou se os palradores de cá de baixo lhe destinam expressões tão atrozes quanto sol fora de época. Nem todos os assentos estavam banhados pelo calor solar e foi por isso que estes dois não se sentaram cada qual em seu lugar assim que chegaram, antes ficaram de pé diante da mesa escolhida a travarem-se de razões em empurrões de mãos e trejeitos de beiços mimosos e praticamente ridículos, estava a cadeira do lado de dentro na sombra e a da ponta ao sol, aquela num vão escuro e frio, esta num varandim cálido de flores e de mar, à qual ambos logo se afoitaram, ele adiante e ela atrás, as mãos dadas, que de um casal se trata, ainda aqui não se tinha dito, o dizer-se Chegaram dois é só avançar um número e nada mais, é dolorosamente sabido como os números enganam, ou melhor, como com os números nos vêm enganando, mas retomando, indo ele adiante tomou o lugar, mas logo ela o puxou, ele forcejou devagarinho, ela tornou a puxar, um e outro faziam-se caretas e apontavam o sol, assim ficaram por uns instantes mais, mais jogo de namorados que real disputa de território, desde início estava à vista quem ganharia o lugar ao sol, todas as pelejas fossem assim, que nem por ser só a distância o comprimento do tampo da mesa ela o acompanhou entre abraços ao assento à sombra e o compensou com um beijo a cedência e, sempre com um sorriso solar nele depositado, foi ocupar a cadeira desejada.
Tendo retomado a minha interrompida leitura para o espiolhanço da mesa alheia, dei-me conta, uns minutos mais volvidos, que não trocava palavra o casalinho, ao fim e ao cabo um bisbilhoteiro não o é a tempo parcial, o que na verdade foi interrompido foi justamente a cusquice e não a leitura, não fica mal admiti-lo, mas tampouco fazê-lo me absolve das culpas. Ao ouvi-los calados logo me apressei a fazer deles mais um desses casais falsos, sem elo que os una, sem vontades e experiências partilhadas, paredes que não formam juntas um lar, todos só tédio e mentira, precipitação desfeita por uma mirada mais longa, eram surdos-mudos aqueles dois, e, senão os dois, um deles apenas, o que num casal de verdade vai acabar no mesmo, o que é teu é meu, o que é meu é nosso, faço minha a tua mudez, nela me reconheço e reinvento, sem ela já não sei viver, o que é o amor, quem sou eu.
O céu e o sol e as nuvens não se detêm nestas miudezas, aliás não podem, é o seu movimento perpétuo que torna mágicos os sentimentos só belos dos homens, mas quem sabe as nuvens não observem enternecidas lá dos altos estes pequenos mundos maravilhosos tantas vezes vividos numa total incompreensão ou, o que é pior, indiferença pelos que os têm na mesa do lado, quem sabe a chuva que delas cai não é o derramar romântico da sua comoção, as lágrimas estranhamente doces de quem viu muito e por essa via sabe reconhecer a beleza quando com ela se depara. Mas dizíamos, o firmamento não pára e o sol que há pouco se assoberbava de luz quente está agora para lá daquelas nuvens grossas, que com propriedade se diria serem de outono, e o repouso soalheiro que aquela cadeira foi, mercê justamente de estar na extremidade do telheiro, é neste instante um lugar desabrigado e agreste, ao invés daqueloutro, a princípio tão indesejado por ser só sombra e frio, agora um resguardo acolhedor, dir-se-ia que sempre as matérias e as energias se reajustam, que o jovem que cedeu aos rogos da amante recebe destarte a merecida recompensa e beneficia então das virtudes do lugar que soube aceitar, também as cadeiras de esplanada hão-de ter seus entendimentos e ironias, esta estará por esta altura dizendo com gosto que quem por último ri, ri melhor, e com tudo isto julgaríamos que o círculo estava completo, a balança equilibrada, mas isso seria mesquinhice reles de incréu ou inocente ignorância dos meandros do gostar e benquerer, porque já este jovem está de pé, não demorou mais que um brevíssimo olhar de súplica vindo do outro lado da mesa, e, sorrisos dados e recebidos na beleza muda do gostar, trocaram seus lugares, estou que seriam capazes de estar nisto uma vida inteira, Fica ao sol, meu amor, Vem para este cantinho resguardado, meu bem, não existe maior calor, benditos sejam.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem

Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados