Silêncio


- Está mal o nosso país
mandava, para dar o mote. Aguardaria. Certamente alguém iria reagir. Certamente concordante. Certamente iria ter mais uma hipótese de observar aquele balançar de cabeça em anuência, aquele olhar sabido, de sobrolho afectado, aquele esgar instantâneo, já repetido, representativo da impotência perante a inegável realidade. Proclamaria ainda
- Isto tem que dar uma grande volta.
Uma pequena mudança das expressões verificar-se-ia, certamente: o aceno de cabeça seria mais pronunciado, as pálpebras ficariam levemente cerradas, as pestanas bem puxadas em arco para o meio da testa enrugada, a boca ainda emudecida de lábios quase inexpressivos, sem os cantos arrebitados. Não me quedaria por ali, insistente, e acrescentaria
- Que há a fazer?
Certamente, iria poder observar o ar a ser expelido por entre os dentes e os lábios, as cabeças a bambolearem um pouco para trás e para um dos lados em movimento semi-circular, os olhos a ganharem aquele brilho de gozo em face da ridícula pergunta e os pescoços a relaxarem. Toda a silhueta abateria, derrotada, predisposta a procrastinar por mais um dia, uma hora que fosse. Reinstalar-se-ia, imperioso, o silêncio.

Portalegre, 29/11/2006

...
Um eu, um qualquer, um eu que me é só vagamente familiar, escreveu, há 13 longos anos atrás, nos idos de outra era, nos lás que são um fumo impreciso, escreveu, dizia, isto.
Tinha isto para aqui guardado.
Reli isto não tenho como saber porquê, num desses finais de tarde de segunda-feira, um desses momentos anónimos e banais de um desses dias chuvosos, brumosos, misteriosos como os há tantos aqui em Mafra.
Não alterei nada. Li e achei que, para o bem e para o mal, poderia escrever uma coisa assim hoje, tantos dias passados. Para o bem e para o mal, muita coisa não mudou na minha percepção, na minha concepção, na minha expressão do que vivo e me rodeia.
Quando me ponho à escuta, ainda impera aquele silêncio. Quando observo em volta, ainda reina aquela morbidez. Quando me detenho frente ao espelho, ainda alguém desse povo morbidamente silencioso me devolve o olhar.

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