É perigoso, este sol

Foi enquanto ajeitava a rocha da cadeira da praia ao espaldar do invólucro de pele da espinha. O sol faíscava grosso no canto superior esquerdo da moldura do dia e eu sentia a carne salgada da face a querer encarquilhar. Foi enquanto me ajeitava para ler e me sabia encarquilhado de cara. O som indistinto que há largos minutos se encaracolava no pesado resfolegar da praia ganhou nitidez da mesma forma que ganham nitidez os contornos ásperos dos cactos dos canteiros do quintal da casa da minha mãe através da objectiva minuciosa da minha máquina fotográfica e então distingui a frase
- Este sol é perigoso.
Uma mulher e um homem mais novos, outra mulher e outro homem mais velhos e uma bebé desacasalada. A mulher mais nova e o par de velhos eram os vértices bicudos dum triângulo isósceles apontado à bebé, que lhes guinchava nos solavancos da areia as ordens torrenciais que, com a potência surda de uma mão biblíca, comandavam a cruzeta da marioneta de cada um. Donde me encontrava, por pouco não lhes surpreendia o rebrilhar sedoso dos fios pregados com pioneses sob a unha dos anelares, no píncaro do cocuruto, nalguma das peludas almôndegas dos dedos dos pés e, já ocultados pelas roupas de banho, no estuário do arroio lodoso d'entre-nádegas. Só o homem mais novo se apartava daquela geometria familiar, emigrado num escaleno só dele, de cotovelos soldados aos joelhos e as palmas salientes a arrebanhar quantidades obscenas de fiambre de bochechas de porco num repuxo de charcutaria que lhe cavava um par de crateras negras debaixo das sobrancelhas hirsutas, oitenta e cinco quilos plenos de tédio e quatro dias de uma eloquente barba. Impressionou-me especialmente como não se descalçava. Enfiado nuns calções de praia garridos e floridos que não tinha escolhido e num pólo azul-escuro que desencantara na gaveta do tempo de solteiro magro, parecia determinado a esperar ali mesmo, de sapatos-de-vela, pela Morte ou pelo Dia do Juízo Final. O que chegasse primeiro.
- É perigoso, este sol.
Travava-se uma batalha. O trio mais a oeste, numa histeria solene de feriado nacional, parecia regozijar com os guinchos tirânicos do rebento, que realmente era um amor. Nas suas costas, a nascente e num plano ligeiramente mais alto, o homem pálido, flácido e calçado fazia o que podia para desencaixar o maxilar superior com as alavancas de osso dos punhos. O homem mais velho desdramatizava
- Também estão estas nuvenzitas, filha, metemos o cremezinho à menina e pronto. Fazia-o dissimuladamente, diplomaticamente, temerosamente, de olhos baixos pespegados ao revestimento alvo e tenro dos cachos de chouriços das coxas da bebé. Uma leve tensão assomava à base da testa do homem dos sapatos-de-vela e eriçava-lhe quase imperceptivelmente o tufo negro do alpendre das sobrancelhas. À mulher mais nova, cuja cruzeta parecia mais folgada que as demais, numa subtil porém inequívoca hierarquia militar matriarcal que ora subalternizava, ora excomungava as marionetas da raça masculina (pois a mulher mais velha exibia ela própria, por sua vez, maior à-vontade que o diplomata), à mulher mais nova, dizia, bastou-lhe repetir uma terceira vez
- Mas é pe-ri-go-so,
sibilando a última sílaba e prolongando-a ameaçadoramente, deixando-a a pairar sobre o cenário de guerra como um polposo zeppelin movido não a ar quente, mas a vinagre a ferver, prestes a abater sobre o títere do maridinho uma salva de mil tiros das mil bocas dos mil canhões dos mil exércitos do Inferno da voz sonsa e nasalada das discussões ao deitar que invariavelmente precedem, num repentismo ensaiado, o apagar do candeeiro da mesa-de-cabeceira da cama de casal onde os sonhos, ajoelhados e de olhos vendados contra um muro de tijolo de burro, são, um por um, com a atroz crueldade das crianças, fuzilados por um infalível pelotão de palavras, silêncios e olhares venenosos.
- Eu vou ao carro, ouviu-se do meio do emaranhado de joelhos e cotovelos do homem calçado, eu vou ao carro buscar a tenda da menina. Só o homem mais velho o olhou de relance, mas logo disfarçou o gesto. Após um brevíssimo instante em que um vácuo impossível sugou todas as horas, todos os sons e todos os volumes do mundo, um guincho mais penetrante da bebé deu-lhe um puxão firme nos fios do crânio e do cóccix e içou-o como uma grua iça para o abate os carros sem préstimo.
- Queres que vá contigo, Nuno, perguntou-lhe com candura a mulher mais nova, enquanto de mindinho arrebitado ajeitava com esmero a pontinha da toalha. Não, cuspiu ele, a arrastar os sapatos-de-vela, perfeitamente acabrunhado, não sei se mais desesperado por ter de ir, se por saber que regressaria.

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