Pensamentos matinais
Um casal que aqui passou vindo da esquina. Vinham de mão
dada, ela na dianteira. Ele dava para o gordito e era careca, desses carecas só
de cocuruto e franja, a toda a volta do crânio uns fiapos de cabelo ainda
visíveis, ralos e translúcidos, enfim, uma negação de qualquer ordem. Ela era
discretamente agradável, tinha umas feições regulares e umas cores, do cabelo, dos
olhos, da pele, sadias. Denotava brio na toilette, os tecidos ricos e largos em
tons de terra todos aprumados em negligências calculadas. Mas ei-los que saem
já do café, as mãos ainda dadas, despacharam a bica enquanto, sentado na
esplanada, lhes refazia a imagem de memória, e ela continua na frente, ele vem
meio-braço atrás, à laia de atrelado. Ela leva o queixo lançado, dá passos
decididos, trá-lo, objectivamente, pela mão. Enquanto eles se afastam, dou por
mim a pensar que ela está com ele porque se sente mais bonita ao lado de um
homem que não o é. E vou imaginando-a crescendo sem compreender a falta de
reconhecimento da sua beleza, sentindo-se injustiçada por nunca ser alvo das mesmas
atenções que as miúdas de aparência mais óbvia e convencional, etc.. Mas não
prossigo. Isto é meio cínico. Travo e dou uma guinada no sentido de ver que ela
encontra nele, isso sim, uma atenção e um carinho que nunca experimentou antes,
nos tempos em que, em vez destas roupas e cabelos discretos de mulher confiante
na sua elegância própria, ela se exibia mais: mais óbvia, mais convencional. Olhando
para trás, ela não compreenderia bem por que o fazia. Mas lá concluiria, num
momento de maior lucidez, que todos, enfim, nos queremos sentir queridos e
desejados. Escrever é um pouco como tentar montar um desses touros de rodeo
norte-americanos. O pensamento é naturalmente o touro, nós que escrevemos somos
naturalmente o cowboy e a inevitável, apenas adiada queda é o momento em que
somos incapazes de dar ao pensamento a forma da palavra escrita, de conter, num
fio narrativo coerente, o seu ímpeto, a sua ferocidade. Pois já lá vai ele – o pensamento
– agora todo debruçado sobre o homem, apontando, com inegável razão, que nem
tudo se pode centrar nela, ele também é gente, aliás, e se tiver sido ele a
escolhê-la, e se for ele a decidir estar com ela, e se é ele que a tolera e
atura? Não entendo como é que o pensamento subitamente põe as coisas nestes
termos em que, naquele casal, um teve de escolher o outro, talvez tenha sido eu
a induzir tal concepção, mas não me detenho nisso e vou-lhe replicando, em nova
prova de cinismo, que aquele homem vive atormentado, isso sim, pela existência
de todos os colegas de trabalho homens que a sua esposa teve, tem e virá a ter,
pois ele sabe que a beleza dela não é dessas que se impõem, visuais e
históricas, num primeiro momento para, na erosão natural do dia-a-dia, perderem
inexoravelmente a força e o interesse. Ao contrário, a sua é uma dessas belezas
que se vão instalando, que não avisam que chegaram, os seus passos não se
ouvem, quando se dá por ela já ela ali está ao lado e logo com o peso de todos
os dias precedentes ao longo dos quais se foi desvendando, se foi descobrindo, e
se àquelas o dia-a-dia erode, a estas o dia-a-dia sacode impurezas, lima
arestas, dá acabamento, ilumina, beneficia, engrandece. É isso que o atormenta,
essa probabilidade, essa ameaça. É neste ponto que me questiono sobre o meu
posicionamento em relação a cada um dos membros do casal. Tomei as dores dele
por ser feio e pus-me contra ela por ser bonita? Mas, antes disso, que é isso
de ele ser feio e ela ser bonita? Defini isso em que momento? Na única vez que
os vi de frente, quando chegaram vindos da esquina? Isso não foi mais que um
deslumbre, tempo para nada, uns meros segundos, espaço de uns escassos dois
metros, no máximo. Havia luz que bastasse para ter uma imagem limpa para a
minha análise? Que é que eu fazia nesse momento? Estava em condições de avaliar
tão magna matéria? Tento recordar-me. Ah, já sei. Voltara ao meu livro ainda a remoer
como, se tal coisa de facto acontecesse, teria sido confrontado com aquela insuportável
expressão do “também não é preciso estragar a vida ao homem” quando, perante a
polícia e o tribunal (sim, já ia no julgamento), declarasse, com veemência e
sem misericórdia, que aquele sujeito ali presente, agora desfeito
miseravelmente em lágrimas, conduzira imprudente e injustificadamente rápido o
seu automóvel na rua de calçada, território de clara prevalência de peões, e
nisso acabara a atropelar uma desgraçada criança vinda a correr de uma das
travessas perpendiculares, os pais atrás despreocupados porque afinal de contas
estavam nas ruas de calçada, de trânsito limitado, do centro, e tal fatalidade resultando
em sabe-se lá que consequências físicas, materiais e psicológicas para aquela
família e aquela comunidade, e terminava mesmo com uma exortação a um castigo
exemplar e público do criminoso, sim, criminoso!, dramatizaria, para
que, de uma vez por todas, este ignóbil comportamento não mais se repetisse nas
ruas da nossa adorada vila. Não sei já quem me atiraria a insuportável frase,
se algum anónimo presente na sala, se o próprio juiz (também ele mal-acostumado
a ir buscar o pão àquela mesmíssima rua na indiferente suficiência do seu SUV),
ou se teria sido, isso sim, antes do julgamento, quiçá pela mãe do energúmeno, focada
unicamente na absolvição do seu menino, ao fim e ao cabo é ainda um jovem, não
fez ainda os 30, tem a vida toda pela frente e a mulher de esperanças, erros
todos cometemos, que atire a primeira pedra quem, os pais da criança até nem
têm levantado muita questão, o que lá vai lá vai, e coisas de semelhante jaez,
em variações entre a ameaça e a súplica, o apelo e o quase-suborno, em pressões
sempre crescentes até ao julgamento, culminando no inenarrável “também não é
preciso estragar a vida ao homem”. Foi ainda com os ecos da tumultuosa sala de
audiências e as marteladas do juiz enquanto berrava “Ordem! Ordem!” que tirei
os olhos do livro e mirei o casalinho que vinha da esquina. Agora que penso
nisso, seriam eles um casal amoroso? Não poderiam ser simplesmente irmãos ou
amigos que, por qualquer motivo, gostassem de andar de mão dada? Seria ele
doente ou atrasado e ela a cuidadora ou coisa que o valha? É incrível a forma
como as pessoas se precipitam em julgamentos em relação aos outros.