Eu aqui

Nunca deixo de pensar sobre como me olharão estas pessoas que aqui passam na rua, sob a minha varanda. Aqui estou, neste pequeno alto, lendo, tomando placidamente um café ou um vinho do Porto, mirando a serra ou a nesga de mar que daqui se alcança, espreitando a rua (nisso pondo o ar mais alheado que consigo) com um gato mole e sadio ao lado, para mais de um tigrado laranja que tem o seu quê de exótico – aqui estou, jovem quanto baste, despreocupado, com tempo de sobra, de calções e t-shirt em dia de trabalho, a pele das pernas e dos braços já amorenada – aqui estou, sentado a uma mesa de jardim, numa imobilidade contrastante com aquela tensão nervosa própria de quem vai ou está a trabalhar, numa quietude vagabunda tão inversa àquela impetuosidade direccionada de quem sabe quando e para onde tem de ir – aqui estou, habitante deste prédio de aspecto sólido e confortável, gozando dos luxos de viver onde tantos apenas passam por motivos de trabalho, onde a vida não é – porque não pode ser – barata – e eu aqui, jovem mas aqui, e gozando o sol, gozando o livro, gozando o licor, num ócio de gato doméstico.

Ter-me-á olhado assim aquela senhora de luvas, rugas e bata-de-trabalho que veio deixar umas caixas de cartão ao ecoponto? Ou aqueloutra carregada de sacos e olheiras, que arfava, de costas curvadas, a caminho do carro? Ou aquele sujeito que, de avental ruço e ar macambúzio, veio à esquina debicar um cigarrito na pausa da manhã? Ou este casal que acaba de tornar, numa pressa palpável, de respiração alterada e um sarilho de papéis nas mãos, ao seu Renault encarnado?

E eu aqui, escrevendo isto.

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