Incubus. Since 1999

Tenho andado a (re)descobrir o último álbum dos Incubus - e é como estar apaixonado outra vez. Aconteceu com este 8 o mesmíssimo que aconteceu com alguns dos anteriores, como A Crow Left Of The Murder ou If Not Now When: a primeira reacção é de estranheza e quase-recusa. A diferença é esta - e apercebo-me cada vez mais do quão essencial isto é: tenho disponibilidade para ouvi-los e re-ouvi-los. Não desisto. E este benefício da dúvida afigura-se-me como algo bem mais complexo do que aquilo que, neste ponto, sou capaz de expressar. Funda-se em algo que vem lá de trás, de um tempo que remete para a formação de quem sou, que compõe o continuum do que fui sendo, onde me reconheço e revejo, por um lado, e que aponta ao que quero ser, por outro. Porque falar de Incubus é falar da minha própria fundação. É patético dizer isto; e, no entanto, é algo que quero, desassombradamente, admitir. Talvez preferisse sentir esta ancoragem em relação a algo mais erudito, menos pop. Mas mesmo isto é expressar o sentimento dos anos mais recentes. Noutras épocas talvez preferisse ter algo mais hardcore para mostrar; noutros contextos, talvez algo menos hardcore. Esta ideia, diga-se, persegue-me desde sempre. E falo da minha banda como podia falar de mim: sempre me senti demasiado ordinário para alguns lugares e demasiado queque para outros, ou demasiado aquém nuns e demasiado snob noutros, e tudo isto num mesmo lapso temporal, num mesmo quadro psico-emocional. A lógica de insuficiência face ao meio tem os seus quês - e nem todos são maus, é preciso que se diga. Cedo li num policial a descrição de um director de hotel que tinha uma dessas frágeis e duvidosas personalidades dos que pretendem agradar a todos. Percebi a mensagem e fiz por incorporá-la. A tensão pragmática dos muitos Eus que fui conhecendo acompanhou-me (e, numa certa escala, definiu-me) durante anos. Se por um lado me integrava natural e alegremente e sem grandes cedências em virtualmente todos os ambientes, por outro evitava fazê-los confluir mais à frente: isolava-os em áreas incomunicantes, fazia por não juntar a uma mesma mesa todos aqueles com quem me relacionava. Antecipava, erradamente provavelmente, que as diferenças que eu identificava neles e que tanto me estimulavam os faria colidir numa incompatibilidade desconfortável e constrangedora. Seja como for, nunca gostei particularmente de celebrar os meus aniversários.
Mas dizia, talvez preferisse sentir esta ancoragem em relação a uma banda mais reconhecível e reconhecida pelos outros. Em síntese, salvaguardadas todas as circunstâncias históricas da minha vida, deve ser isto: devia ter desenvolvido esta ligação com uma banda mais reconhecível e reconhecida. Enfim, vou-me felizmente desembaraçando deste tipo de ideias de ir ao cu ao passarinho. Sempre tive a sorte do equilíbrio interno, acho eu, apesar das, mas também por força das, mil contradições e incertezas que necessariamente me povoam e a que dou corpo e forma de letra. A concepção moriniana (quero referir-me ao Edgar Morin; deve ler-se «mórr-hãn-niana») de ordem assente em e dependente de focos difusos de caos talvez venha a propósito.
Dispersei-me, aparentemente. Mas falar de fenómenos que tocam a dimensão fundacional do Ser e não vaguear, mesmo que brevemente, por esses escuros vãos não está na natureza das coisas. E o fenómeno Incubus tem, em mim, essa dimensão. A primeira música que lhes ouvi foi o Familiar. Foi em casa de uma rapariga que era amiga de uma ex-namorada minha. Não me recordo do nome da rapariga, nem vagamente do seu aspecto, mas posso dizer com alguma segurança que estava sentado num chão de tacos de madeira, encostado à minha mochila da escola, e que era o final de uma tarde. A música acertou-me em cheio, ressoou logo em mim. No autocarro de regresso a casa ainda ia com ela na cabeça (o que, bem entendido, não quer dizer coisíssima nenhuma). Era isto 1999, parece-me. Soube mais tarde que aquela música fazia parte da banda sonora do Spawn, filme lançado dois anos antes - a banda sonora deste filme é, diga-se de passagem, muitíssimo boa. A segunda música dos Incubus que conheci foi o Pardon Me. Daí ao Make Yourself foi um pulinho. Desse álbum, as letras de The Warmth, When It Comes ou Out From Under, para não falar da faixa que partilhava o nome com o disco, eram a sistematização musicada e harmónica de muito do que sentia e queria (ouvir) dizer.
Numa era de Winamps e ficheiros .mp3 a cheirar a novo, as músicas chegavam-me desligadas da peça-mãe que as completa e enquadra que é o álbum e mesmo com nomes trocados e qualidade sonora duvidosa. Mas era assim mesmo. Vieram depois os Kazaas da vida e, com eles, além de muitos vírus (informáticos, ressalve-se), horas infindas de lentíssimos downloads noite dentro de novas faixas e versões live de tudo quanto tivesse Incubus no título do ficheiro. E assim fui conhecendo, insensivelmente, num espanto crescente, o Fungus Amongus e o S.C.I.E.N.C.E., além de k7-teste e inéditos pré-Fungus - dentre os quais recordo muito especialmente a Damnation, canção que, em retrospectiva, era já, como um manifesto, toda uma declaração de intenções. A qualidade e potência da banda ao vivo eram excitantes e contrastavam vivamente com muito do que se via e que reflectia já uma inclinação da indústria e do mercado para os grupos de estúdio, espécie de traição do pacto musical com o público das bases. Foram os tempos do Hilikus, do Take Me To Your Leader, do Shaft, mas também do New Skin, do Idiot Box, do Favorite Things, do Redefine.
As diferenças entre os três álbuns saltavam à vista e isso ganhava vulto como selo de autenticidade, de honestidade: isso - sei-o hoje, sentia-o então - era a manifestação normal e desejável do que é orgânico e original. Importa sublinhar que, oito álbuns de originais mais tarde, nada disso mudou.
Veio depois o Morning View e, com ele, o grande pico de popularidade da banda. Vêm dessa caixa de música o Echo, o 11am, o Warning, o Just A Phase. O meu alinhamento cronológico com os novos lançamentos da banda a partir desta altura não me impediram de ir revisitando, com o passar dos anos, os sons mais antigos, fosse pela sua carga nostálgica e invocadora, fosse pelo seu potencial de constante actualização e reinterpretação. Tudo isto me ia chegando por intermédio de cópias-pirata (num tempo em que ter um gravador de CD e um stock valente de CD-virgem era indispensável) e downloads que uma leitura mais aturada da lei não deixaria de classificar de ilegais. O dinheiro escasseava, mas abundavam os amigos informáticos amadores e, sobretudo, uma leveza adolescente que é, talvez, de tudo, aquilo que mais profundamente me emociona rememorar.
O primeiro concerto veio anos mais tarde. Foi no Super Bock Super Rock, ainda no Parque Tejo. Foi meio decepcionante, mas só me lembro disto por um esforço de memória. Lembro-me que entrei no recinto com o concerto já em andamento. Havia ainda imensa gente a entrar e a circular e só me lembro de eles tocarem os hits. Seja como for, quase toda a gente ali presente aguardava os SOAD ou os Prodigy e isso sentia-se. Quando dei por ela, o concerto já tinha terminado.
No ano seguinte (ou dois anos depois, não sei bem), fui vê-los ao então Pavilhão Atlântico. Isto era já tempo do Light Grenades. Ganhei o bilhete no Top+ (podia dizer saudoso Top+, mas mentir é feio) num concurso em que nos era pedida uma frase a propósito do single de lançamento, Anna Molly. Enviei, num belo sábado à hora d'almoço, uma SMS onde sugeria que a Anna Molly era uma caixa de supermercado por quem o Brandon Boyd se tinha apaixonado - algo de inegável hilaridade, já se vê - e fui, sem surpresa, aliás, um dos felizes contemplados. O concerto era na noite da segunda-feira seguinte e foi só nessa segunda ao final da manhã que me ligaram da produção do programa a pedir alvíssaras. Estava já de volta a Portalegre, donde tratei logo de regressar. Foi, já o disse, numa segunda-feira à noite, uma noite invernosa de inícios de Março e, a abrir, meteram lá uns metaleiros odiosos. O bilhete, sem surpresa, era para uns lugares que ficavam a uns bons 3 km do palco, nuns esconsos esquecidos pelo arquitecto. Por acaso, não tinha nenhum pilar à frente. Mas só por acaso. Para completar o quadro, o Pavilhão Atlântico estava a menos de meia-casa, uma visão deprimente. Parecia que caminhávamos para uma noite muito mal passada, mas o concerto foi absolutamente fenomenal. Passei-o todo sentado, lá nos altos, e foi o mais próximo que tive de tê-los a tocar na minha sala-de-estar. À saída, uma jovem da Antena 3 interceptou-me de microfone em riste e lembro-me de ter notado, com alevantado apreço, que tinha sido inesperadamente excelente ouvir, por exemplo, a Light Grenades. Grande malha, by the way. Essa e a Pendulous Threads, a Rogues ou as Earth To Bella (I e II).
Tem graça que ao A Crow Left Of The Murder só o conheci a fundo depois. A estranheza e quase-recusa que referi nos idos do início deste texto manifestaram-se aí pela primeira vez - e assaz assanhadamente, agora que penso nisso. Foi por intermédio do DVD Alive At Red Rocks - que trazia apenso um CD de cinco faixas muito apreciável, que antecipava a Monuments And Melodies e a Pantomime - que acabei por voltar um pouco atrás no tempo e prestar o devido tributo a esse que foi o álbum de estreia do Ben Kenney como baixista da banda. Pistola, Sick Sad Little World - que têm versões ao vivo espectaculares no não menos espectacular DVD Look Alive -, Agoraphobia  ou Here In My Room saem dessa caixinha de música. A propósito, o grafismo desse álbum (como de quase todos, de resto) é notável.
O segundo grande momento de estranheza e quase-recusa veio com If Not Now When. Mas era já outro homem nesse luminoso e inaugural ano de 2011. E esse álbum, comprado de fresco, foi a banda sonora de um inesquecível Festival do Crato. Em particular a In The Company Of Wolves, cenário musical de um dos momentos mais belos da minha existência: uma comprida carrinha Ford com o rádio-CD a tocar e a rolar imperturbavelmente numa dessas longuíssimas rectas alentejanas, um horizonte infinito para onde quer que virássemos os olhos e um poente glorioso todo em tons quentes de amarelo e vermelho. Enfim, é um desses acontecimentos que pertencem, e pertencerão sempre, ao intangível domínio do sonho tornado realidade.
Depois do If Not Now When, travei conhecimento com dois projectos paralelos do Brandon Boyd. The Wild Trapeze, um soberbo álbum a solo (tive de importar), e Sons of the Sea, uma parceria com Brendan O'Brien, antigo produtor da banda, que resultou no lançamento de um álbum homónimo. Ambos os trabalhos são admiráveis, cada um à sua maneira.
Finalmente, eis que recebo de presente, no Natal passado, o 8. Os últimos anos foram profundamente marcados pelos problemas vocais do Brandon Boyd e os vídeos disponíveis no YouTube das músicas deste último disco - e de uns EP que eu não sei muito bem situar e delimitar - que aqui e ali fui mordiscando apenas evidenciavam isso. Entrei numa espécie de negação, acho eu. E levou-me novamente alguns meses a re-conhecer nesta novíssima sonoridade a indesmentível linha de continuidade e de identidade da banda. Surge-me agora tão clara a beleza e honestidade de músicas como Familiar Faces, Glitterbomb e Undefeated. Já State Of The Art, que parece marcada por um registo auto-biográfico de notável maturidade crítica, afigura-se-me como a síntese e o balanço de um grupo de homens que faz música há mais de 25 anos e que, necessariamente, é hoje mais de 25 anos mais velho do que quando começou. O confronto franco e poético (no que o termo tem de criação artística) com o passar do(s) tempo(s) - o do envelhecimento, mas também o do progresso da indústria musical - parece perpassar todo o álbum. E chegamos ao fim com um sorriso nos lábios. But you can tell by the lines in my smile that I have been around for a while.
Uma viagem, por mais breve que seja, pela produção dos Incubus evidencia a sua imensa plasticidade musical, a sua originalidade e autenticidade, a sua constante evolução. E eles, como eu, como tantos de nós, somos grandemente, essencialmente, profundamente isso: uma entidade viva, complexa e variegada que envelhece e evolui, que se reinventa e metamorfoseia dentro de um quadro identificável, que se vai depurando e cristalizando ao mesmo tempo que vai acumulando camada sobre camada de novos sentidos e significados. A eterna conversa do I want the old Incubus back que, desde sempre, atafulha as caixas de comentários do YouTube a cada novo lançamento é tão imbecil quanto injusta.

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