A questão do «exemplo vindo de cima»

Uma pergunta inofensiva. Uma senhora estende-nos a mão para nos cumprimentar; que devemos fazer? Hipóteses:
  1. dobramo-nos em dois numa vénia repuxada e aparatosa
  2. devolvemos urbanamente o cumprimento
  3. rejeitamos o cumprimento e tratamos de garantir que não há sequer contacto físico
Opção certa? Bom, depende.
Se este encontro imaginário tiver lugar sob a regência d'El-Rei D. João V, opção 1.
Se formos pessoas normais neste e deste tempo, opção 2.
Se tal encontro se der numa reunião de trabalho entre responsáveis políticos ao mais alto nível e estiver a ser filmado por um batalhão de operadores de câmara de todo o Mundo, opção 3.




Quando, no início de Março, Horst Seehofer, Ministro do Interior alemão, recusou o handshake de Angela Merkel, quem (quase) errou não foi o ministro, foi a chanceler. Numa altura em que eram cerca de 150 os casos confirmados de Covid-19 na Alemanha, tratava-se de cumprir à risca as recomendações sanitárias. Mas, mais do que isso, tratava-se de dar o exemplo.
Enquanto responsáveis políticos, Merkel e Seehofer não podiam, sob nenhum pretexto ou salvaguarda, apertar as mãos. Principalmente por este motivo: estavam a ser filmados. Isso mesmo se foi observando nos dias seguintes, num desfile concertado de imagens enternecedoras e inolvidáveis de deputados, ministros e responsáveis ligados à Saúde a ensaiarem as mais admiráveis formas de se cumprimentarem frente às câmaras sem passou-bens ou beijos. Implicou várias partes do corpo (não todas, apenas várias, infelizmente), com destaque incontestado para os cotovelos. A coisa meio que vingou, pelo menos durante uns dias.



Entretanto, o cenário mudou e passou a impor-se o princípio higiénico do Distanciamento Social. Precisa de cumprimentar a sua chefe de Governo? Então acene ao longe (bem longe) ou envie-lhe um emoji no grupo de Whatsapp do Conselho de Ministros.
Mas isto foi só um parêntesis. O ponto é este: dá-se à questão do exemplo dado por governantes e outros agentes políticos uma importância exagerada. Ou melhor, dá-se-lhe uma forma grotesca. Veja-se o caso de Merkel: que problema havia em Seehofer devolver-lhe serenamente o cumprimento? Evitava o embaraço alheio, era cortês e educado. Merkel cometera um "deslize"? Pois sim, isso não lhe passara despercebido, tanto mais que tivera o cuidado de ir longa e meticulosamente lavar as suas mãos (ambas) antes de ir coçar o olho ou catar o nariz. E mais informava que se tratara meramente de um lapso momentâneo da chanceler.
Só que não. O risco era demasiado grande. Que exemplo era aquele, afinal? Sim, como podiam Merkel, Seehofer e os demais membros do governo alemão fazer eco das recomendações sanitárias se eles próprios andavam - como ali ficava cristalino aos olhos de todos - a esfregar abertamente as mãos uns nos outros? Tivessem vergonha! Claro que o povo alemão, se Seehofer tem dado aquele despudorado aperto de mão, ia todo, num impulso colectivo único, dar-se as mãos. Davam-se primeiro as mãos, agarravam-se logo os braços (de há séculos que sabemos que a sequência é esta) e depois, como seria? Quem os parava? Era apertos de mãos a torto e a direito, por pura imitação, num mimetismo reflexo, num destrambelhamento automático, levados à perdição pelo mau exemplo vindo de cima - e era o caos.

Por cá, muito se foi falando do "exemplo" dado pelos deputados na Assembleia. Que iam muitos, que estavam todos encavalitados uns nos outros, que, cúmulo dos cúmulos, iam avançar com a sessão solene de comemoração do 25 de Abril. No caso português, não houve um Horst qualquer que recuasse a mão e varasse à nascença a insidiosa ameaça do Mau Exemplo. Não houve, como é costume, cautela ou sensatez. Povos do Sul, enfim. Fez-se a sessão solene. Muito gostam eles de sessõezinhas solenes e efeméridezinhas de revoluçõezinhas. Resultado? Pico de infectados. Pico de óbitos. O fim da picada. Foi, em tempos de pandemia, o pandemónio*. 

Enfim, como dizia o outro, "tenham noção".



(* este trocadilho foi bom, não foi? É que fui buscá-lo a uma intervenção do André Ventura. No copyright infringement intended.)

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