"Deixe o que quiser. Leve o que precisar."

Numa das ruelas interiores de Mafra encontra-se, em cima de uma cadeira, encostada à fachada de um pequeno prédio, uma caixa rectangular de plástico transparente. A tampa está fechada, mas abre-se sem custo. Lá dentro estão o que parecem ser sacos de massa e arroz e pão. Uma folha A4, numa das faces, apela, em maiúsculas manuscritas: DEIXE O QUE QUISER, LEVE O QUE PRECISAR. É uma manifestação desinteressada de Belo, um objecto que dá corpo a algo singelo e bonito, material e moralmente.
Pois das duas primeiras vezes que lá passei não foi isso que vi naquela caixa. Não vi ali, certamente, nada de mal; acho que vi apenas algo de um kitsch fastidioso e, em última instância, profundamente hipócrita. Mais uma destas coisas fofinhas de agora, pensei. Como os vídeos épicos de agradecimento aos cantoneiros ou as canções de louvor aos caixas de supermercado, os "nossos heróis do dia-a-dia". Como os discursos descabidos dos pivots de telejornal ou os arco-íris pousados em nuvens do grand slogan Vai Ficar Tudo Bem. Como os infindos concertos solidários nas redes sociais ou os omnipresentes hashtags #fiqueemcasa. Como tudo, enfim, que decorre da narrativa espectacular que domina os meios de comunicação, a das analogias hiperbólicas do Estamos Em Guerra e a das partilhas acéfalas dos "estudos" e hipóteses mais inverosímeis e inoperantes, e de tudo, enfim, o que reflecte o inenarrável empolamento da presente situação de crise, antítese esgotante do bom senso e  bom gosto que um fenómeno desta natureza exige.
Quando, pela terceira vez, passei por aquela caixa, vi que estava eu próprio a perder o bom senso e o bom gosto. A irritação, o sentimento de impotência e a frustração não podem impedir-me de separar o trigo do joio e, talvez mais importante, de desfrutar da beleza simples deste tipo de objectos e iniciativas. Talvez lá deixe algo dentro da próxima vez.

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