Das opiniões
A opinião de alguém depende sempre da sua posição.
Ou melhor: a validade ou a qualidade da opinião de
alguém depende sempre, para quem a ouve, da sua posição social,
profissional e (ou) material.
Isto é especialmente verdade se essa opinião for contrária –
contrária a quem a ouve, mas sobretudo contrária àquela que é a opinião
predominante ou, pelo menos, a mais comum.
Se a posição social, profissional e (ou) material do
opinador contra-corrente for desvalorizável, então essa opinião não passará de
uma tontice – uma tontice que não merece, sequer, contraditório.
Isto é dizer que, se um sujeito mal-nascido, com uma
profissão não-especializada e (ou) proprietário de um carro velho, omite uma
opinião incomum ou desconfortável sobre o actual estado da democracia parlamentar,
da evolução do programa espacial europeu ou da gestão das florestas na
Península, quem a ouve o mais que fará é esboçar um sorriso de condescendência,
abanar ao de leve, negativamente, a cabeça – e mudar de assunto.
Claro que isto não acontecerá em todas as ocasiões.
Subentendem-se, aqui, algumas condicionantes. É importante que entre o opinador
e o(s) que o ouve(m) haja um desfasamento social, profissional e (ou) material.
Este desfasamento definir-se-á face à circunstância particular dos envolvidos e
do tempo histórico que vivam; e definir-se-á, em última instância, em função do
juízo do(s) que ouve(m).
Por outro lado, é necessário que a opinião emitida
interfira, dalguma maneira, com os interesses, desejos ou medos do(s) que
ouve(m).
Finalmente – e isto é decisivo – importa a relação que une
os envolvidos. Nada disto se verificará se se tratar de uma relação
desenvolvida num quadro de empatia, respeito mútuo ou, mais vaga e
simplesmente, desinteressadamente.
Temos assim que: se um indivíduo de fraca posição relativa
(digamos, um funcionário administrativo do centro de saúde local) comentar com
um conhecido que é vereador na Câmara Municipal e que tem ambições na estrutura
do partido que a democracia parlamentar está refém das dinâmicas de poder dos bastidores
partidários, não terá ainda terminado a frase e já aquele o não está ouvindo,
num misto de aborrecimento e condescendência. E terá como resposta um sacudir
mole da mão, algum enfadado estalido da língua e logo, sem transição, com um
olhar explicitamente fixado noutra direcção – Estes gajos nunca mais desentupiram
aquela sarjeta.
Esta assumpção pode explanar-se também pelo seu contrário.
Se um tipo de excelente posição social, profissional e (ou)
material emitir a opinião mais abstrusa ou boçal acerca seja do que for, então
essa opinião será recebida com acenos graves e profundos de aprovação e, quiçá,
admiração.
Claro que também aqui se subentendem algumas condicionantes.
Ainda o desfasamento a que fizemos alusão acima; ainda a ideia de interesse e
compromisso; ainda, decisivamente, o tipo de relação que une os envolvidos.
Mas com algumas nuances. O desfasamento é agora
auto-crítico; e o interesse e compromisso remetem não para a opinião em si, mas
para a circunstância da relação que une o(s) que ouve(m) ao opinador.
Já o tipo de relação que os une aponta a algo cultural. De
um modo genérico, todos querem angariar as simpatias dos poderosos e influentes
(ou dos que exibem sinais exteriores de poder e influência, o que vem a dar ao
mesmo). Todos pretendem relacionar-se com eles, especialmente em público.
No caso do administrativo hospitalar que, ao seu legítimo e
aliás desafectado comentário sobre os meandros da política parlamentar – o qual,
de resto, deveria forçosamente interessar, enquanto tema, a alguém que faz
disso ocupação profissional, apenas teve como reacção um trejeito e desconsideração,
o normal seria que levasse o caso a peito, que dalguma maneira (com maior ou
menor nobreza) manifestasse o seu descontentamento ou, em alternativa, dissesse simplesmente para consigo que era a última vez que desperdiçava o seu latim com tal
personagem. Mas não só não o fez, como sabemos nós que aquela não era a
primeira nem a segunda vez que tal acontecia. E sabemos ainda que deu por si a responder, com a maior das
prestezas – Nem essa, nem nenhuma. Quero ver como será quando chover.
A esta breve e oca troca de impressões sobre a manutenção
das sarjetas da praça pública (na verdade, o vereador, imediatamente alheado,
já nem ouviu o que o outro lhe respondeu) seguiu-se um silêncio incomodativo. O
que falara primeiro fixava com excessiva atenção os fundos negros e granulosos
da sua chávena de café, recriminando-se intimamente por se sujeitar àquele
tratamento. O outro lançava uma mirada ao Mercedes do Presidente da Câmara, que
passava nesse instante, e por qualquer associação lembrava-se de que não podia
adiar mais a viagem que prometera à sua secretária pessoal – acto contínuo,
enviava-lhe uma mensagem de texto onde lhe pedia, num consabido tom profissional
cheio de marotices nas entrelinhas, para comprar as passagens. Não mais
pensaria naquele comentário do do balcão das consultas. O seu gesto de mão sacudira
aquela impertinência desautorizada com toda a rapidez.
Tudo teria sido diferente se, em vez de ter sido o tipo que
atende no centro de saúde, tivesse sido o deputado eleito pelo círculo ou aquele
dirigente da distrital que andava a mexer os cordelinhos por ele a
comentar a triste dependência do Parlamento face aos interesses partidários (se,
por absurdo, lhes aflorasse aos finos lábios tal frase). Assim fora e o
vereador encavacaria um pouco com a gravidade e melindre de tal afirmação, esforçar-se-ia
por, através de um há muito estudado anuir do semblante, se mostrar sensibilizado
para tão magna questão, para mais exposta com tamanha mestria e agudeza, enquanto
vasculharia apressadamente por entre as suas frases de circunstância e
compromisso aquela que melhor se ajustava àquela conversação – e ao seu profundo
desejo de sair airosamente daquele imprevisto imbróglio.
Nisto, não daria pelo Mercedes do Presidente da Câmara e,
por conseguinte, não diria nada à sua secretária pessoal, o que, por caminhos
que nunca viria a apurar cabalmente, estaria na origem, daí a dias, de um
muito aborrecido e dispendioso desaguisado matrimonial.
Mas isso é outra história. O que importa, no caso vertente,
é isto: a qualidade e validade de uma opinião depende muito pouco da sua
própria pertinência e interesse.
Daqui decorre que, ora para os que, como o deputado ou o
dirigente da distrital, estão acostumados a ter uma alevantada recepção das
suas tiradas, ora para os que, como o infeliz funcionário administrativo, tantas vezes se vêm na posição de serem escorreitamente
desconsiderados na expressão dos seus pensamentos, nem aqueles se devem ter por
admiráveis na sua agudeza, nem estes por imbecis pelas suas
opiniões.
Dir-se-á, não sem a-propósito, que nem uns nem outro são tão crédulos ou estão
tão desmoralizados para se sentirem ora admiráveis, ora imbecis. Sobretudo os
primeiros, não é crível que desconheçam a influência da sua posição face a
outros menos bafejados pela Fortuna.
Mas é preciso reconhecer que há coisas que queremos – porque queremos – acreditar. E isto inclui, num mesmíssimo nível de querença, a admirabilidade e a imbecilidade. O deputado convencer-se-á de que a admiração que viu estampada no rosto daquele vereador municipal assentava, apesar de tudo, no seu brilhantismo. O administrativo, por sua vez, acabará por concluir que foi um imbecil chapado por comentar com o vereador um pensamento que, vindo de onde veio, só poderia ser entendido como uma ingenuidade de quem não é (nem nunca será) do meio.
Que uma opinião valha pouquíssimo pelo que é e tanto por equívocos
pragmáticos é apenas uma daquelas vilezas com que temos de aprender a viver,
como as moto-4 ou a corrupção endémica.
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Enquanto se discutia, pela enésima vez, com ansiedade e minúcia, a execução por enforcamento dos acusados pelo atentado do grão-duque, Zoltan disse que se recusava a assistir e que discordava da pena de morte.
“Com benevolência, os amigos sorriam da ingenuidade de Zoltan. Era um excelente homem, mas pouco acautelado na vida e na expressão. Tinha deixado falir duas boas lojas e vivia pobremente dumas subscrições que lhe couberam no legado da velha tia. Ainda por cima, uma filha casadoira e estouvada e um filho estroina acrescentavam-lhe os cuidados. Aderira ao clube em tempos de prosperidade, mas agora eram os amigos que, secretamente, lhe pagavam a quota e as despesas. Não valia a pena, portanto, insistir no género de conversação em curso.
– Está um sol excelente para beterrabas.
– Acha?
– Desde que a terra não seja ácida.
– Ó amigo, venha cá, ainda há licor de limão? Não, traga orchata, é mais higiénico.”
Mário de Carvalho, O Varandim