Da opção sueca ao jornalismo português
Título do Público de hoje: “Na última semana a Suécia foi o
país com mais mortes per capita da Europa”. A notícia elabora uma tese (creio
honestamente que esta é uma forma rigorosa de descrever esta peça jornalística)
que é sintetizada, na página seguinte, na rubrica das setas (onde apontam quem
esteve bem, quem esteve mal e quem esteve assim-assim): “O modelo sueco de
abordagem à covid-19 (...) não está a produzir grandes resultados (até a nível
económico) (...)”.
O rosto desta seta é Anders Tegnell, epidemologista-chefe e
responsável-mor da gestão da doença naquele país escandinavo.
A seta dada
pelo Público é, está bom de ver, vermelha e a apontar para baixo.
Em suma, a ideia assenta sobre duas traves-mestras: uma, a
estatística de mortos per capita da semana de 12 a 19 de Maio, que a Suécia
lidera; outra, a fraca comparação com a quebra no consumo entre a Suécia e a Dinamarca.
Daqui se conclui que a estratégia sueca “não está a produzir
grandes resultados” – “até a nível económico”. Mas será justo concluir-se isto?
Vejamos, ponto por ponto (são só dois, vai ser rápido).
Desde logo, a própria peça assinala que “[em] termos de
números globais desde o início da pandemia [,] a Bélgica, Espanha, Itália,
Reino Unido e França têm mais mortes per capita do que a Suécia”. Isto parece
muito significativo. É obviamente demasiado cedo para avaliar a eficácia do
confinamento domiciliário maciço e o shut down generalizado do tecido
económico no que diz respeito ao controlo da propagação do vírus e dos seus
efeitos mais nocivos, mas este indicador comparativo não parece propriamente
apontar para os maus resultados da opção sueca. Por outro lado, considerando
que a pandemia já dura há mais de três meses (mais de doze semanas), este mesmo
indicador desvaloriza, por si só, um argumento assente numa amostra de uma
semana.
Em suma, o destaque dado à ideia de que a opção sueca "não está a produzir grandes resultados" no domínio da Saúde parece basear-se numa leitura demasiado limitada da realidade.
Já sobre o segundo ponto, a peça diz o seguinte: “Se o PIB
[sueco] decresceu menos do que noutros países vizinhos, e o consumo também, a
diferença não tem sido grande”. E prossegue citando “um estudo da Universidade
de Copenhaga” que calculou a redução do consumo nos 25% e 29% para Suécia e Dinamarca
respectivamente. Este é um indicador a ter em conta, mas dificilmente permite concluir,
isolado, que “até a nível económico” a receita sueca “não está a produzir
grandes resultados”. Desde logo, porque apenas compara dois países e não
especifica qual o período analisado (não especifica nada, aliás, o que constitui um facto jornalístico significativo por si só).
Mas isto é o menos. O mais é que a Economia não
se reduz ao consumo, nem pouco mais ou menos. É preciso olhar ao Desemprego, ao
fecho de empresas, ao desaparecimento de postos de trabalho, à perda de
rendimentos (imediatos e de longo prazo), aos custos para os orçamentos
nacionais e das instituição de Segurança Social (com os programas de lay off,
os subsídios de Desemprego, os chamados planos de revitalização económica, etc.).
Estes últimos, como já tem sido dito por responsáveis governamentais, converter-se-ão com toda a naturalidade em impostos (aumento
de ou novos) e esses, por sua vez, agravarão o impacto da quebra de rendimentos. De resto,
todos estes indicadores se interligam sistemicamente: o aumento do Desemprego
tende a traduzir-se na baixa dos salários, estes na baixa do poder de compra,
este na baixa do consumo, este na baixa da rentabilidade das empresas e da
colecta, estas... etc.
Em suma, a ideia de que o modelo sueco nem ao nível económico traz “grandes
resultados” não pode, com seriedade, sustentar-se em tão pouco.
Aqui chegados, importa, talvez, acrescentar mais alguns
tópicos (mais dois, só).
Um, a Saúde não se resume à Covid-19. Não se pode aceitar de
ânimo leve como um sucesso o combate a uma doença com as características desta
se isso tiver implicado, pelo caminho, cedências significativas noutros domínios
da saúde pública e dos cuidados assistenciais.
Vejamos o caso português. Inúmeras notícias têm dado conta,
nos últimos dias, do impacto do modelo de abordagem luso à pandemia. No número
do Público que temos vindo a citar, elencam-se alguns dados tornados públicos
pela Ministra da Saúde ontem, no Parlamento. Consultas por realizar: 1,7
milhões. Só no SNS. E só até Abril. Cirurgias adiadas: 51 mil. Só no SNS. E só
até Abril. Atendimentos nos Serviços de Urgência: menos 400 mil. Só no SNS. E
só até Abril.
Os números falam por si. Mas não dizem tudo. Some-se-lhes
aquilo que era já o drama do acesso aos cuidados de saúde pré-pandemia e, talvez
mais premente, some-se-lhes esta questão: que consultas e a quem, que urgências
e a quem, que cirurgias e a quem? É sabido que a larguíssima maioria de toda
esta carga assistencial se fica a dever a doença crónica. Isto já sugere uma
resposta para uns 3/4 dos «que & quem». Quanto às cirurgias adiadas,
destaca-se mais um dado veiculado por Marta Temido: nos primeiros quatro meses
do ano foram realizadas menos 2500 cirurgias oncológicas que no mesmo período
em 2019.
Mas mais tem sido noticiado neste campo: suspensão generalizada
das consultas e terapias de reabilitação aos sobreviventes de ataque cardíaco (Antena
1), quebra de 85% de novos diagnósticos de cancro (link), suspensão generalizada dos planos de fisioterapia com seriíssimos impactos em doentes crónicos (link), aumento exponencial
dos problemas associados à ansiedade e depressão, etc., etc...
Dois, que dizer dos danos colaterais do confinamento
domiciliário? O mais óbvio estará ligado ao risco de aumento (e gravidade) dos
casos de violência doméstica. A OMS alertou no início deste mês para isso mesmo,
estimando a subida nuns trágicos 60% (link), mas a informação que veiculam é
contraditória com a diminuição generalizada de denúncias que se conhece em
Portugal – diminuição esta que, sublinhe-se, não parece significar nada de
positivo.
E sobre os danos colaterais do cancelamento de todas as
actividades presenciais do Ensino Básico? Além da ligação óbvia à própria violência
doméstica, importa frisar que a missão quotidiana da Escola vai muito para lá
do Ensino. A Escola é, para imensas crianças, um lugar de protecção e de
cuidado e o único sítio onde tomam uma refeição quente. Quando uma criança
falta sistematicamente às aulas (presenciais), as escolas têm mecanismos e
circuitos relativamente bem definidos para sinalizar essas situações às
autoridades competentes. No presente contexto de aulas a distância, a realidade
é diferente – e não é para melhor.
Por tudo isto, parece-me que a análise ao caso sueco merecia
um pouco mais de atenção, tempo, rigor e honestidade intelectual.
Mas vou mais longe: dá-se o caso que o Público tomou posição nesta
matéria e quer validar a opção portuguesa?
E, note-se, nem me refiro à bizarria de termos o Governo a distribuir
“apoios” aos media. Refiro-me, isso sim, àquilo que tem sido a
inclinação visível de inúmeros agentes de comunicação social nas últimas
semanas: a de “noticiar” o que antecipam que seja já a vox pop. E essa, quanto à opção do executivo PS, é maioritariamente favorável. Num estudo publicado a semana passada pelo Sol, 72% dos inquiridos afirmaram considerar «Boas» as medidas tomadas pelo Governo. Há nisto uma certa afinidade com a dinâmica das filter bubbles das redes sociais. Suponho
que os tempos (os corporativo-financeiros) não estão para brincadeiras e que importa
reduzir os riscos a mínimos olímpicos.
A esta tendência (que, se olharmos para lá da actual
pandemia, já se manifesta abertamente há anos – veja-se os casos de Trump ou do
Brexit) junta-se uma outra, que remete directamente, como momento-fundador,
para o Europeu de Futebol de 2004 – e que é a de uma certa nota de patriotismo,
de um Nós sentido e pseudo-mobilizador, que perpassa e pontua grande
parte do discurso jornalístico (o televisivo, sobretudo).
Foi nos idos de 2004
e a propósito da cobertura televisiva daquele torneio em particular – que inaugurou
ainda a onda de apoio incondicional à Selecção que perdura até hoje – que esta
questão se colocou, verdadeiramente, pela primeira vez. Recordo-me de um Clube
de Jornalistas, na ressaca do Europeu, em que o Carlos Daniel, principal rosto
da RTP nesse Verão, foi chamado a reflectir e mesmo a justificar aquele
posicionamento (link). Enfim, é uma matéria muito complexa. O que é certo é que
fez escola e hoje já ninguém se espanta com os urros do Nuno Matos ou com as
sabujices do Nuno Luz. Como em (quase) tudo, a linguagem futebolística penetrou
os restantes domínios da comunicação pública. O mais comum é que o faça por via
da analogia provinciana; desta feita, fá-lo por via de um mais requintado desvio
deontológico.
O jornalismo português está doente. Ora aqui está uma constatação profundamente
deprimente.