A folha em branco I

1 A folha em branco não autoriza silêncio. Obriga-te a que a anules, preenchendo-a. A folha em branco rouba-te o direito à ausência que tu ainda crês que te assiste. És tu próprio quem se coloca perante a folha em branco. Sim: és tu próprio que te privas de um silêncio que desejas.
2 A folha em branco não existe. A folha em branco é uma invenção tua. É uma abstracção a que, na composição estrangeira da palavra «branco», dás corpo, e onde buscas uma existência paralela, talvez agradável, talvez diferente. Nela te recrias, tu que não existes, tu que te anulas no preencher do teu dia-a-dia. A folha em branco é o teu último reduto. A folha em branco és tu.
3 A folha em branco é uma escarpa sobre o oceano. Para lá do recorte duro da rocha, a Morte, a imensa tranquilidade da Morte. O brilho metálico da Lua sobre o mar, que enfeitiça, a nortada fria, que corta, o impacto monumental das vagas aos pés da ravina. Achas que te falo da Morte? Vejo-te estacado no rebordo precário do abismo. Como podes tu saber se o passo em frente será o da Morte, o da queda irreversível para o infinito salgado do oceano, para o inferno de espuma nos rochedos? Ou se será o da Vida, finalmente! a Vida, o do salto de pássaro, o do salto que te sustém no ar num voo que deves a ti próprio, um voo vezes sem conta adiado, como adiado vai sendo enquanto te manténs na cisma dessa precariedade de granito a pensar no frio e na queda e na dor e no vazio e na Morte, só a Morte, sempre a puta da Morte, a Morte a Morte a Morte A MORTE!, e nessa merda dessa procrastinação já te esqueceste da Vida, nunca te lembraste da Vida, mas olha!, aí a tens diante de ti, aí a tens a rebrilhar na superfície negra das águas, a insinuar-se no sopro rouco do vento Norte, a dissimular-se no vão sombrio das minhas palavras. Não sentes o seu bafo junto ao teu rosto? Não te adies mais. Dá um passo em frente. Voa.
4 A folha em branco é uma fuga. (Mas de que poderias tu querer fugir? De ti? Do teu dia-a-dia? Do teu futuro?) A folha em branco é uma fuga. É um túnel escavado sob o muro rematado a arame farpado. Sobretudo, a folha em branco não é nada. Não tem passado; não tem, portanto, futuro. É a hipótese inverosímil de um recomeço branco, limpo, puro, livre, mas já experimentado, já sabedor, já teu. A certa altura, é normal que desejes a Morte. A folha em branco é a Morte ao alcance dos teus dedos.
5 A folha em branco não é uma fuga. (Tu não queres fugir.) A folha em branco é um muro rematado a arame farpado dentro do qual te encerras. A folha em branco é um castelo no topo de uma colina. Lá fora, a Morte monta-te o cerco. A folha em branco é um carneiro gordo que lanças borda fora, em sinal de abundância, como se a Vida não pudesse ser desperdiçada, ou tu a soubesses gozar. O carneiro gordo, golpeado mortalmente no pescoço, és tu.
6 A folha em branco é uma latrina. Nela despejas todos os dejectos imundos e supérfluos do dia-a-dia. Nela vomitas, nela defecas. Nela cospes, nela escarras gritos. Nela choras gritos. A folha em branco é condescendente. A folha em branco recebe-te, acolhe-te. A folha em branco espera por ti, por que tu a anules. A folha em branco chora contigo.

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