Entra tosco e aos apalpões, de órbitas enormes e salientes, os olhos fixados num ponto qualquer que não faz sentido. No medo do choque, o crânio calvo segue num plano recuado ao do tronco, traz a coluna a prumo, o chapéu-de-chuva vai tocando aqui e ali a medir distâncias e a sentir arestas. As pernas movem-se com rigidez. O rosto, esse, é bonacheirão, de nariz grande e redondo, faces escanhoadas, testa longa. Os lábios finos, de homem, como pedindo condescendência e apoio, desenham um sorriso quase perene, que só desfaz quando, sentado, já com o café e pastel-de-nata que a menina do balcão, reconhecendo-o de todos os outros dias, lhe vem, contra as regras da casa, deixar à mesa, se sente desacompanhado, fora de cena.

Tento imaginar como será sair de casa praticamente cego. Começo por me lavar, por me vestir. Estarei sozinho? Estará alguém comigo, nessa tão chata e tão profunda intimidade?
Ou estará a casa a meu exclusivo e especifíssimo jeito, toda organizada e arrumada para que a saiba ver de olhos fechados? Terei comigo o gato? Ele poderia, sem dúvida, aprender os meus passos, forçosamente repetidos, obedientes à casa organizada e arrumada, encaixados nessa organização, para saber não se postar diante de mim, aos meus pés, de lombo alevantado, de cauda arrebitada, de olhos melosos voltados para cima a pedir uma festa matinal, e, nessa ingénua afectividade, provocar a minha queda e com ela desarrumar a casa, o meu dia, o meu corpo todo, porque um gato, apesar de tudo o que por aí se diz, quer bem a quem o trata bem. Imagino-me já lavado, já vestido, e sozinho.  Sim, sozinho. Afinal de contas, como pode um homem que se preze sequer pensar em sujeitar uma mulher ou algum familiar a uma tão lamentável e estéril situação? Sozinho, enfim, calço-me, talvez estupidamente sentado no chão, porque imagino que é bom. Dou com a chave, fecho a porta, estou no hall do prédio. O mais lógico será tomar o elevador. Isso afigura-se-me inesperadamente fácil. Basta decorar bem os pequenos desníveis do chão, arrastar os pés um pouco, estar concentrado. Estou ainda dentro do prédio, do lado de cá do vento e do ruído e do mundo desorganizado e desarrumado e sem quem me aprenda os passos para não me fazer cair. Abro a larga porta de vidro, levo com aquilo tudo na cara, mas isso era previsível e basta apenas aguentar o primeiro impacto. Sinto frio no rosto e no pescoço, e o ar húmido e os cheiros da chuva. Estou ainda no alpendre do prédio, o abismo das escadas defronte, arrasto discretamente os pés até sentir o rebordo do primeiro degrau, tenho a mão direita a roçar na parede áspera só para me dar uma referência adicional, e vou pensando se venho com roupa adequada a um tão estranho junho. Penso que o principal será assentar bem o pé no primeiro degrau, o cérebro calcula a passada necessária para escorrer pelos outros abaixo, até à calçada, matematicamente. Estou na calçada, intacto. Faço contas aos lancis, estradas, degraus, postes de electricidade, sinais de trânsito, canteiros, reclamos, esplanadas, paragens de autocarro, árvores, bancos de rua, desníveis vários, inclusive uma estátua enorme, que se interpõem entre mim e o café. Devia talvez escolher outro café que não este, nesta rua que desce tanto, nesta rua que fica tão para cá de tantos obstáculos. A cegueira faz ver obstáculos que de outra maneira são invisíveis?
Bom, deixo-me deste exercício afinal estúpido, talvez ofensivo, seguramente errado. Mas é que este homem que existe e que está diante de mim, a duas mesas de distância, sai de casa assim, praticamente cego. Não sei onde e como vive, se longe, se com alguém, não sei e não saberei nunca, porque há mesmo coisas que nunca sabemos mesmo. Mas é que este homem, dizia, costuma ter neste café um lugar onde consegue sentar-se e estar e tomar o seu café e pastel-de-nata, onde encontrou já uma hora e uma mesa suas, num canto perto do balcão em que o assento é comum, corrido à face da parede, e lhe é de fácil acesso e bom apoio e conveniente até à menina do balcão que, como é para ele, lhe leva o serviço à mesa, os dois precisando já de poucas palavras, e as que sempre são precisas têm muito de cumprimento e pouco de utilitário, e tudo isto é muito importante e bom para qualquer homem, e que o deve ser ainda mais para um homem praticamente cego que vem sozinho e, levado pelo amor e por uma concepção qualquer de homem prezável, seja talvez só.

Hoje, aqui chegado, o homem deu-se conta de que ocupavam a sua mesa e hora do costume. Ali se encontravam duas mulheres passageiras que só tinham atenção para o umbigo da sua coloração de cabelo, para o brilho dos seus ecrãs de toque, e que viram na sua aproximação tentativa, no seu sorriso idiota, nas suas órbitas grotescas, na sua mão hesitante, apenas o comportamento repugnante e risível de um doidinho. Acostumado a que o reconheçam e lhe cedam aquele lugar – pode um simples lugar num café assemelhar-se tanto a um lugar no mundo? –, ali se quedou por uns segundos, de olhos fixados no tecto, balbuciando qualquer coisa na sua voz grave. Pareceu-me envergonhado, sentiu-se certamente ridículo, subitamente mais cego e desamparado. O sorriso cordial e devedor morreu-lhe por instantes no rosto, dilui-se em duas longas rugas que lhe sulcam a face. Uma mesa vizinha, a duas mesas de distância desta, de alguém mais familiar, deu-se conta e logo, dentro do possível, rearrumou aquele homem. Pensei, não sei bem porquê, que tudo seria mais fácil de aguentar se ele fosse mais novo.

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