Irrompem os carrilhões

Irrompem os carrilhões.

Assim – “irrompem”. Sem aviso. Como uma torrente rasgando este silêncio morno de Domingo à tarde. Uma onomatopeia vinha talvez a calhar, mas nunca – Vuu-uhh-uum – foram bem a minha praia. A sala do carrilhonista fica (acho eu) na base da torre Sul, à direita de quem encara a fachada principal do Convento. O conjunto da torre Norte é – não me lembra bem o porquê, mas sei que já ouvi contar – tosco, abrutalhado, e não permite os mesmos virtuosismos melódicos. Dará, quando muito, para chamar à missa ou tocar os finados – em alta grita. Seja como for, o homem lá está, neste instante, naquele alto ermo, rodeado de toquinhos de madeira e de ferro, onde zurze com afinco (Abel; estou que se chama Abel, o carrilhonista-mor; não me recorda já o apelido), presos a grandes cabos que sobem às alturas semi-divinas dos mil sinos e sininhos joaninos (diz que cada um tem um nome; há-de certamente ser pela proximidade à pia baptismal, pela relação próxima com os ministros do Senhor). Dezenas de notas irrompem pela janela do quarto adentro. Zaam. Vuuum. Como um sopro cheio de cores ou a objectivação harmónica do voo de uma ave sobre montanhas e vales. Alguma coisa assim entre o sinestésico e o lírico-cinematográfico. Como a brisa quente numa dessas tardes de Verão em que o calor parece suspender tudo – pó, moscas a fazer oitos, tédios juvenis, o Tempo. A vila defronte do Convento, com o terreiro e as ruas que escorrem por ele abaixo na direcção do poente, sei-o por memória fotográfica, por memória dos sentidos, pasma para aquilo, descarnada de pessoas, com as esplanadas mortas (no lugar de cada uma, como pedras tumulares, jazem os toldos enormes carcomidos pelo Sol e pela humidade implacável de Mafra), vedada à imobilidade contemplativa por um Estado de Emergência que ilegaliza tais despautérios. São dias (e dias, e dias) de reiterados e multiformes confinamentos – domiciliários, coercivos, psíquicos, voluntários, sanitários, sanatório – e mestre Abel segue bulindo o carrilhão. Beatles e Roberto Carlos, vetustas composições barrocas, fados tradicionais, o Hino da Alegria. Os sons retintam a tarde de uma animação festiva, recobrem as ruas de uma magia descomplicada qualquer, arremetem-nos pelas casas onde nos remeteram, onde nos remetemos. Há qualquer coisa de incrivelmente, indizivelmente belo num homem que toca carrilhão para toda uma vila estranhamente encerrada na interioridade de cada um. Assoma à mente, por mero reflexo do músculo literário, a imagem do homem (ossudo, dedudo, muito branco num fato muito negro) e o seu piano, como duas flores belas e precárias, por entre os destroços da cidade dizimada por alguma grande-guerra, um último reduto da Humanidade depois da Barbárie, ou coisa parecida. Enfim, um Belo maiúsculado que identifico, que sei existir – porque, porra, o sinto na pele –, mas que, quiçá pela co-presença do Absurdo, me escapa, que irremediavelmente me escapa, há semanas, a cada novo Domingo.

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