Desconfinamento: não há motivo para alegria

Começa amanhã [começou ontem, dia 15, na realidade] o desconfinamento e eu não sou capaz de me animar com a notícia. Soubemo-lo quinta passada, numa dessas cada vez mais insuportáveis apresentações em powerpoint de António Costa. Amanhã voltamos a poder beber a bica. Amanhã voltamos a poder usar os bancos dos jardins. Não há motivos para alegria. Nessa tarde, quem sabe enquanto Costa ultimava os preparativos para a comunicação, sentámo-nos na escadaria do Convento e, como não fazíamos há demasiado tempo, assistimos dali ao pôr-do-sol sobre o mar. Pensar que, ao fazê-lo, infringíamos a lei...

Amanhã voltamos a poder beber um café no café – mas só ao postigo, em copo e com colher de plástico ou cartão, pegar e levar dali para fora. Amanhã voltamos a poder sentar num banco de jardim – mas nada de abusos: há por aí certamente um decreto que determina rigorosamente o número de pessoas que, em cada momento, o pode fazer. Não há motivos para alegria.

Amanhã os cafés podem voltar a servir cafés. Amanhã as bibliotecas e as livrarias podem reabrir. Amanhã as praias podem voltar a ser visitadas. Cada uma dessas coisas tem, porém, um “mas”, um eterno “mas” pandémico, um “mas” que é um símbolo de prudência, um “mas” que, mostram os cabrões dos números, é “inevitável”. Pois recuemos a 2011, quando enchemos a Avenida da Liberdade, quando uma ilusão qualquer nos fez protestar – “inevitável é a tua tia”. Também então nos diziam que tudo era inevitável: o aumento de impostos, a quebra programada dos rendimentos, a proscrição do futuro. Também então eram especialistas que o asseguravam – os da troika, claro, mas igualmente os contratados das televisões, os académicos de carreira, toda a trupe de economistas engravatados. Que vivíamos, que vivêramos “acima das nossas possibilidades” – também então se transferiu todo o ónus da situação calamitosa da Ordem das Coisas para cima de Nós, deste imensamente vago e absorvente Nós que hoje, volvidos dez anos, leva nas mãos a batata-quente do que se vai passar nas próximas semanas. Porque essa é, ao fim e ao cabo, a grande vitória da narrativa governamental: na passada quinta, uma vez mais, nem uma palavra foi dita sobre o reforço das condições de resposta do SNS, sobre a dotação de meios de rastreio e despistagem de casos, sobre seja o que for que diga respeito à responsabilidade ministerial e estatal sobre a evolução da crise pandémica.

Elencar o que amanhã volta a poder ser feito mostra quão longe se foi nesta absoluta insanidade pandémica. Dizer, em voz alta, que amanhã já podemos parar num parque público (este é um tópico a que temos de voltar) mostra até que ponto fomos agredidos por um vírus que, como o Sars-Cov-2, não tem cara discernível. Ter um primeiro-ministro a dizer-nos, numa quinta-feira à noite, o que podemos voltar a fazer na segunda seguinte e ter como conteúdo dessa comunicação este tipo de gestos e comportamentos é algo que custa a acreditar. É algo que, mais do que ser essencialmente incrível, é inaceitável. Como é que podemos aceitar isto? Mas nem há um “nós” que aceite ou não aceite seja o que for, nem se trata, verdadeiramente, de “aceitar” ou não. Mais: muitos há que desejam isto, que se regozijam nisto, que, ao invés, acham que só se devia desconfinar numa previsivelmente sempre adiada páscoa.

Há porém uma terceira via, mais terra-a-terra, que, quem sabe, é até talvez predominante. Aqui há dias telefonei ao T. L. pelo seu aniversário; acabámos a conversar sobre a pandemia e logo compreendi que a única coisa que verdadeiramente o afligia era que ele, fechado em casa, via da janela e sabia pelas redes que outros, muitos outros, não cumpriam, e que portanto, como está na ordem das coisas, “por uns pagam todos”. Em nenhum momento me pareceu incomodado com os porquês e os comos de toda esta situação – a ele cabia-lhe, única e expressamente, cumprir. E saber que outros não cumpriam (sempre este “cumprir” indefinido e supostamente universal) afigurava-se-lhe motivo mais que suficiente para apertar ainda mais o garrote. Fiquei a pensar que aquela desarmante concepção das coisas (quando se definem os termos daquela forma, não há nada que possamos dizer; todos estaremos de acordo que, por exemplo, quem se sabe infectado se deve resguardar para evitar infectar outros), em que tudo começa numa obrigação primária de “cumprir”, se prolonga num perverso espiar do Outro que “não cumpre” e se rege unicamente por uma lógica de punição paternalista, é certamente partilhada por muito boa gente. Nunca tal coisa me tinha ocorrido e, bem vistas as coisas, é realmente a maneira mais básica de conceber tudo isto. Tudo aquilo assenta, é preciso dizer, num chorrilho de pretensos casos de incumprimento. Desde o café em P. S. que, “se bateres à janela, entras e servem-te como se nada fosse, e depois sais por uma portinha nas traseiras”, que, quem denunciou, não quis, “obviamente”, dizer em que rua era ou como soubera. Desde uma tal festa em parte incerta em que, dos “14 ou 15” presentes, “uns 12” estavam positivos. Até à esplanada da D., ali junto aos semáforos da A. H., que de início tinha duas mesinhas separadas para o pessoal poder poisar a chávena, mas que às tantas, “vi-os eu”, eram paletes que ali se reuniam, “tudo à molhada como se nada fosse”. Casos e casos e mais casos, e tudo igualmente vago e estranhamente linear, perfeitamente injustificável e incompreensível. “E como soubeste disso?” – “Oh, isto sabe-se”. Assim, “sabe-se”. Tal como se vai sabendo desses casos em que uns tipos saiam à rua com uma trela na mão e que, quando questionados por um polícia, afirmavam que o cão tinha fugido. Ou aqueloutros em que um printscreen de uma conversa privada é partilhada nas redes, na qual uma das partes assediava a outra a juntar-se a uma festa onde, claramente, o coronavírus ia encontrar pasto. E se, no primeiro destes casos, fica por explicar por que raio é que um tipo saíria à rua de trela na mão com o inverosímil fito de assim ludibriar a autoridade (que, note-se, tem hoje o direito de nos interpelar na rua e fazer-nos perguntas) quando nunca, em nenhum momento, foram proibidos os chamados passeios higiénicos, no segundo cenário levantam-se outras questões – desde logo, como é que foi obtido aquele screenshot? Foi captado, certamente, por uma das partes envolvidas na conversa (que era “privada”). Por maioria de razão, terá sido captado por aquela parte que estava a ser assediada a “incumprir”. Ora, partilhar conversas privadas é, por si, uma coisa reles. A ser verdade, é de crer que a pessoa tomou essa decisão durante a conversação, o que, a confirmar-se, certamente determina tudo o que desse momento em diante essa pessoa escreverá para o que, sabe-o ela, em breve será partilhado e reproduzido perante muitos desconhecidos. Todas estas estórias se revelam frágeis ou pelo menos de carácter duvidoso. E nada disso seria importante se não fossem estas mesmíssimas estórias a servir de motivo para a perpetuação e mesmo a agudização das medidas de restrição. “As pessoas não cumprem, por isso é que isto não se controla, por isso é que é preciso apertar o garrote”. Fácil.

Amanhã reabrem as escolas primárias e os jardins-de-infância. Talvez que nalgumas delas voltem as polícias para repetir aos meninos que não devem, porque não devem, tirar as máscaras. Talvez que muitas delas não vejam regressar todos os seus alunos, submetidos alguns a um prolongar deste terrível confinamento domiciliário pelos próprios pais, movidos por sabe-se lá que amálgama indistinta de Medo, de uma certa concepção de propriedade privada aplicada às crianças, de noção perdida do quão perdidamente doentes toda esta clausura nos está a deixar.

Entretanto, ficou a pairar da apresentação de quinta uma ameaça de congelar a reabertura, mesmo de a fazer retroceder (Se se portarem mal... – ameaçou, patusco, o Pai Costa). A coisa tomou a forma de um quadradinho hediondo, sub-dividido em quatro áreas, três cores, quatro números, um “xis” – tudo muito gráfico e básico e simplezinho para a grei – tão atrasadinha, coitada – compreender. Surpreende até que não tenha antes sido apresentado um gráfico em forma de supositório – ou não é ao nosso cu que tudo isto aponta?

As “linhas vermelhas” são duas: o valor do Rt e o número de novos infectados por cada 100 mil habitantes a cada 14 dias. Este último tem de se manter, anunciou o P-M, abaixo dos 120. É um objectivo muitíssimo restritivo: se fizermos a conta a grupos de 100 indivíduos, estamos a falar de pouco mais de um décimo de pessoa a cada duas semanas. Somem-se-lhe o expectável (e desejável) aumento de movimento de pessoas, as anunciadas campanhas de testagem massiva e o facto aparentemente indesmentível de que o vírus não deixará de circular por aí – e fica difícil de perceber qual é, afinal, o objectivo desta gente. Seja como for, uma coisa é certa: TUDO depende, única e exclusivamente, de cada um de nós. Se o xiszinho do quadradinho coloridozinho passar ao laranjinha ou ao vermelhinho, a putinha da culpazinha é do vizinho do primeiro-esquerdo, que anda muito desconfinadinho, não é? Não importa que o retomar das actividades volte simplesmente a evidenciar, entre tantos outros fenómenos, as carências crónicas dos transportes públicos, a sobrepopulação e o desordenamento do território das periferias de Lisboa e Porto, a fragilidade das mais básicas condições de vida de enormes bolsas da população.

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