3001 em protesto

Realizou-se ontem, em Lisboa, uma manifestação de protesto contra a gestão da pandemia. A Lusa, no telex que algumas das principais redacções papaguearam com descaro (Público, TSF, SIC Notícias, JN, todos publicaram o mesmíssimo (!) texto; só o Expresso teve a decência de vagamente fazer o seu trabalho), apontava para um número a rondar os 3000 participantes.

Nada desprezível, portanto, sobretudo por estes dias.

A notícia, que, tanto quanto pude ver, pouca ou nenhuma atenção mereceu da parte das televisões, resume-se assim: 

Deu-se em Lisboa um ajuntamento de milhares de indivíduos sem máscara e sem que fosse cumprido o distanciamento social.

Nem faltou, no final do copy+paste dos quatro órgãos noticiosos, a frase-síntese com os acumulados de óbitos e infectados desde Março do ano passado. Supõe-se que seja este o "enquadramento" jornalístico da peça. Realmente, para quê somar-lhe valores de mortos não-covid, estatísticas do desemprego ou da evolução do tecido empresarial, dados relativos à doença mental, questões relativas à dimensão jurídica e constitucional destas restrições, comentários sobre os riscos ligados à protecção de dados, à livre-circulação de pessoas e bens ou à gestão de fronteiras...

Como disse, só o Expresso se deu ao trabalho de fazer algo além-telex e citar alguns dos que ali marcaram presença, no costumeiro registo vox pop. Mas mesmo isso surge à laia de mínimos olímpicos - antes e depois desses depoimentos podemos ler, ipsis verbis, as mesmíssimas frases publicadas pelos outros meios de comunicação. De referência, todos eles.

O tratamento dado a este acontecimento - na forma, no destaque, no enquadramento, no tom - diz bem do que tem sido o papel e o comportamento do Jornalismo nesta crise pandémica. "O vírus são os media", lia-se num dos cartazes da manifestação. Não há como discordar. Para lá do Sars-Cov-2, que sim, terá levado à morte de mais de 16 mil pessoas nos últimos 12 meses, vivemos uma seriíssima, profundíssima pandemia de Medo. E se aquele se transmite no contacto entre pessoas infectadas, o vírus do Medo propaga-se através do sensacionalismo mais abjecto, afectado e tendencioso que tem sido a estratégia tábua-de-salvação de uma indústria que não cessa de trair, horariamente, o seu código deontológico. Qual é o significado e o alcance de, como me aconteceu, ter uma jovem mãe a desviar ostensivamente a cara para o lado e a curvar-se toda sobre o seu ombro quando, de máscara posta, se cruzou comigo numa álea larga e arejada de um jardim público?

Quando se vive algo sequer remotamente parecido com o que temos vivido de há um ano a esta parte, o mais natural e legítimo é que queiramos sentir que o caminho tomado é o melhor possível, que não havia uma alternativa mais adequada, que existe um rumo e uma lógica inteligíveis nas medidas decretadas, que o que nos atingiu é proporcionalmente grave, que as transformações impostas como que compensam os danos colaterais que acarretam.

Pois nada, absolutamente nada disto se verifica.

Não sou apologista daquela forma de protesto. Mas aquelas 3000 pessoas têm a minha simpatia e apreço. Contem comigo. Sou o 3001º.

P. S.: registe-se o dia: 20 de Março. Daqui a 15-21 (3-9 de Abril) dias assistiremos certamente a um aumento significativo no número de novos casos na região de Lisboa e Vale do Tejo.


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ACTUALIZAÇÃO: 23/03/2021

Notícia do JN de ontem à noite:

Não é de espantar que surja uma notícia deste tipo. Era expectável, até.

Seja como for, que alguma das pessoas (organizador ou não) que marcou presença na manifestação possa estar infectada com o novo coronavírus (e não "com covid-19", que é a doença provocada pelo vírus) não significa rigorosamente nada. Nada há de irónico ou simbólico ou contraditório ou seja o que for nisto. O vírus e a doença existem; o protesto, tanto quanto foi possível perceber da escassíssima cobertura noticiosa, não o negou.

Ao invés, que o JN, citando a Tomar TV, noticie que um organizador esteja afinal infectado e que, ao fazê-lo, não reflicta no título da notícia aquilo que diz na peça - isto é, que essa informação foi entretanto negada -, isso sim é sintomático e significativo. Naturalmente que não chega que "outro elemento da organização" a negue para que devamos assumir que a informação é falsa. Mas o que ficará, e ficará apesar de qualquer tipo de desmentido ou rectificação do jornal, é aquela que consta no título, em letras garrafais - e que será, de resto, tudo o que uma grande parte dos visitantes do site do JN lerá.

O protesto foi contra a gestão da crise pandémica, não um gesto negacionista. Colar e confundir mediaticamente qualquer forma de crítica à gestão da pandemia com actos de negacionismo (a adopção do termo, diga-se, é absurda), com teorias da conspiração (Qanons & Co.), com movimentos de extrema-direita ou com qualquer outro dos demónios do nosso tempo é, em si, um gesto mal-intencionado, desonesto e atentatório da mais elementar liberdade de expressão e pensamento.

Vivemos, de facto, um momento em que, pragmaticamente, não podemos tornar público qualquer tipo de desacordo ou sequer descontentamento com este novo statu quo. Dizer que esta dinâmica psicossocial é perigosíssima é um understatement. Veremos onde tudo isto nos levará.

(da caixa de comentários desta notícia)

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ACTUALIZAÇÃO: 08/04/2021

"P. S.: registe-se o dia: 20 de Março. Daqui a 15-21 (3-9 de Abril) dias assistiremos certamente a um aumento significativo no número de novos casos na região de Lisboa e Vale do Tejo."




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