Da váacina da Astrazenéca

O presente imbróglio em torno da vacina da AstraZeneca [váacina da Astrazenéca] é talvez um episódio que, pelas suas contradições e nebulosidades, sintetiza de forma particularmente notável a actual circunstância histórica.

1) Noticiou-se, o mês passado, que o conglomerado anglo-sueco não estava - nem ia - cumprir com o acordado junto da UE.


2) Nos últimos dias, um número crescente de países europeus foi suspendendo a administração das vacinas desta farmacêutica.


3) Em causa estão complicações graves detectadas em pessoas que tomaram esta vacina.

4) Ontem, a Pfizer-BioNtech e a Moderna anunciam um acordo para uma compra adicional pela UE que totaliza 350 milhões de doses.


À primeira vista, parece que estamos perante um gigantesco ajuste de contas. Os líderes da UE, cada vez mais pressionados com o que mediaticamente é percepcionado como um progresso demasiado lento das campanhas de vacinação, e depois de várias declarações públicas relativas às falhas de entregas da AstraZeneca - que chegaram a materializar-se na retenção de vacinas previamente destinadas à exportação para a Austrália e outros países fora da Europa -, tomam uma posição de força e orquestram, com subtileza q. b., um boicote à farmacêutica. Cada país vai suspendendo, por precaução, a administração desta vacina, que fica assim sujeita a uma reavaliação. O mais certo, dizia ontem um responsável da DGS, será a retoma a breve trecho do uso dos lotes da AstraZeneca. Seja como for, torna-se público um acordo extraordinário com outras duas farmacêuticas. Negociação agressiva, portanto.


Claro que esta é uma visão meio conspiratória da coisa, muito à le Carré. Afinal de contas, já aconteceu no passado - poucas vezes, é certo - que, face ao surgimento de reacções adversas sérias e relevantes, se impõe a suspensão preventiva de um fármaco enquanto se lhe investigam as relações de causa-efeito. Acontece, porém, que, tanto quanto se sabe, no caso vertente não existe nada que aponte a essa relação causal. De resto, os especialistas apressam-se a esclarecer que estabelecer uma relação deste tipo é sempre uma tarefa complexa. O que mais impressiona, contudo, é a escala dos casos que levaram a esta situação (recorde-se que, em pouquíssimos dias, como um fósforo, mais de 20 países avançaram para essa dramática decisão): eram ontem conhecidos menos de 50 casos de reacções adversas num universo que superava já as 17 milhões de doses administradas. Menos de 50 em mais de 17 000 000. Residual, portanto.


Nas últimas 48 horas, multiplicaram-se as vozes de responsáveis clínicos e académicos erguendo-se contra a decisão portuguesa (pelos mesmíssimos responsáveis que, dois dias antes, tinham vindo a público reafirmar a sua total confiança neste fornecedor) de aderir à onda de suspensões preventivas - que é intempestiva, infundada, perigosa para a percepção e confiança públicas. É difícil, perante os dados conhecidos, não subscrever estas críticas. O principal risco será o de, a prazo e numa lógica sistémica, minar a confiança na Vacina enquanto prática terapêutica e de, simultaneamente, dar força aos movimentos anti-vacinação.
Ao mesmo tempo, não será a coisa mais natural que ganhe vulto, sobretudo entre aqueles chamados para a toma desta vacina em particular, um sentimento de insegurança e medo? Um responsável português ligado à gestão das convocatórias dos utentes listados para vacinação dizia esta segunda, à Antena 1, que já vinham de trás os receios manifestados em relação à vacina da AstraZeneca - muitos, inclusive, negaram-se a comparecer à chamada. Claro que tudo isto vem no seguimento do extraordinário e altamente suspeito esmagamento dos tempos de produção e distribuição de uma vacina que teve lugar com o desenvolvimento destas vacinas contra a covid-19 - algo a que já aqui nos referimos.


Noticiou-se que, dentre os vários contratos assinados pela UE na sua demanda por vacinas, o da AstraZeneca era o que implicava um custo unitário mais baixo. O barato sai caro? Talvez. Mas o que este episódio simboliza e sintetiza vai muito para lá disso. Nele encontramos, na linha-da-frente, i) a expressão mais hardcore do mastodôntico negócio dos conglomerados e multinacionais farmacêuticos e ii) as maquinações da Alta Política europeia - onde tudo se articula, desde interesses económico-financeiros a vantagens no plano da política interna, desde movimentações geopolíticas a incompetências puras, desde obscuras concertações de bastidores a tiradas do mais descarado spin; tudo, menos uma visão honesta e comprometida com o Bem Comum.
Num outro plano, este episódio corporiza a dimensão eminentemente política (uma baixa-política, uma forma vaga de populismo) de tudo ou quase tudo o que diz respeito às decisões pretensamente técnicas na abordagem a esta pandemia. Vemos, uma vez mais, os responsáveis da DGS a protagonizarem o decadente papel de afirmarem uma coisa num dia e verem-se forçados a dizer o seu exacto contrário no dia seguinte. Vemos, uma vez mais, os responsáveis políticos e sanitários a precipitarem decisões em aparente ligação directa com as trends tragicómicas que incendeiam, cíclica e estupidamente, as malditas redes sociais. Vemos, uma vez mais, uma dinâmica de réplica cega e imediatista do que se faz "lá fora". Vemos as televisões, uma vez mais, a ser palco de um sensacionalismo sem limites, sem escrúpulos, sem-vergonha.
Algures debaixo desta loucura institucional e mediática, bem lá no fundo, quase inerte, jaz um vírus que provoca uma doença respiratória.

𓀡

Entretanto, parece cada vez mais claro que as premissas criadas logo nos primeiros meses de 2020 e os precedentes progressiva e inexoravelmente abertos de lá para cá impuseram uma dinâmica de inegável auto-sustentabilidade deste "vírus que nos enlouquece"... 


Apetece mandar tudo à merda.
...

Termino com mais uma colagem de títulos.

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