Posta de Pescada III, por Bruno Henriques

À noite todos os gatos são pardos.
À noite os tímidos são audazes.
À noite as pessoas sacodem as suas preocupações em movimentos frenéticos nas pistas de dança.
À noite as pessoas dissolvem em soluções etílicas o nó que lhes aperta a garganta.
À noite vomitam-se angústias (
www.semtinela.blogspot.com).
À noite escrevem-se textos como o que se segue, ou como outros que há espalhados por este blog.

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5*
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Já a noite caiu há um bom par de horas quando o Night-Auditor sai de casa para ir para o trabalho.
A noite está agradável, o céu está limpo e vêem-se as estrelas, tantas que nem se podem contar. O hotel onde agora entra, e que é do mais luxuoso que pode haver, não tem no entanto mais de cinco.
Pensa de si para si que, se fosse crente (ou se fosse o Paulo Coelho) diria que Deus pôs as estrelas no céu para mostrar aos homens o quão infinitamente bom é o hotel que Ele construiu para nós, nada menos que um planeta inteiro. Luxo de cinco estrelas é o máximo que um homem pode criar, ou mesmo seis ou sete, mas, mesmo que tivesse cem ou mil, nunca poderia sequer ambicionar a comparar-se com a obra de Deus porque o que Ele cria tem uma classificação em estrelas infinita. Adiante, adiante, ainda há muito trabalho a fazer e não é seu costume entregar-se a este tipo de pensamentos, pelo menos antes das quatro da manhã.
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- Boa noite.
- Boa noite.
- Já não era sem tempo, pá. Já não via a hora de chegares.
- Não estou atrasado, ou estou?
- Não, pá, não estás, mas é que tive uma tarde fodida. Então não é que chega-me aqui um cliente e começa a mandar vir, assim sem mais nem menos, a dizer que...
O Night-Auditor já conhece esta história. É sempre a mesma, só que umas vezes o cliente chama-se Alberto, outras Henrique, outras Ana Maria, outras Maria Antónia.
O motivo da reclamação pode ser a vista que não lhe agrada, ou o colchão que é mole (ou duro), ou outra coisa qualquer, mas o argumento é quase sempre o mesmo, "Eu estou a pagar...".
O pensamento do Night-Auditor corre mais rápido do que a língua do Colega. Atalha:
- Há gente que por pagar um quarto já pensa que é o dono do hotel todo.
O Colega não queria ficar por ali.
- É. Há gente mesmo filha-da-puta. Sabes o que é que o gajo me disse depois de eu dizer que já não tinha quartos com vista para o vale?
A ferida era recente, já se via, e o sangue, isto é, as palavras, continuavam a jorrar da boca do recepcionista.
Não é que o Night-Auditor não o compreendesse, mas ele não estava ali para oferecer o seu ombro ao primeiro choramingas que lhe saísse ao caminho. Aqui tratava-se de trabalho, de contratos e de dinheiro. A amizade que os unia era apenas um dano colateral.
O Night-Auditor resolveu simular um certo desinteresse, folheando as facturas do dia e soltando monossílabos entre cada frase do Colega.
- Bom, o melhor é passares-me o turno e depois já me contas o resto. Já está quase na tua hora.
Finalmente, algo capaz de mitigar a dor do Colega. A proximidade da hora de saída e a antecipação de uma cama aquecida por um corpo conhecido, eram coisas que sopravam para longe as nuvens negras do semblante do Colega. Este era um bem que se afigurava tanto mais valioso, quanto comparado com outros que não o tinham. Ele, Night-Auditor, por exemplo, para não irmos mais longe.
- Há mais alguma coisa que tenhas para me dizer?
- Não, não há mais nada. Tirando esse filha-da-puta que parece que tirou o dia para me chatear, a tarde até foi tranquila.
- Então se não há mais nada vai-te já, faltam só dez para a meia-noite.
- Se tu o dizes... Muito pouca-vergonha hão-de ter se me vierem chatear por sair dez minutos mais cedo.
- Já deste muitos dez minutos a esta casa, não há-de ser por aí.
- Bom, então, que tenhas uma boa noite de trabalho.
- Boa noite Colega. Até amanhã.
- Até amanhã.
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(continua...)

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