Caem as máscaras

Não me espantaria que os telejornais do jantar desta sexta-feira chuvosa e fria e escura tivessem incluído nunca menos que um segmento de imagens onde pontuassem hordas de "jovens" em apinhada folia nocturna em que nove em cada dez - porque era esse o assunto da peça - se exibissem despidos de máscara. Imagino, do lado de cá do ecrã, uma massa de bons cristãos assistindo arrepiados, benzendo-se perante tal espectáculo, murmurando, entredentes, num misto de assombro e raiva,
- Mas a pandemia ainda não acabou,
repetindo-o mesmo
- Mas a pandemia ainda não acabou,
- Mas a pandemia ainda não acabou,
- Mas a pandemia ainda não acabou,
só não sabemos se o repetiriam em voz audível, se no segredo dos seus pensamentos, como não sabemos se o diriam por mera constatação de uma realidade relativamente objectiva, se por um inconfessável desejo
- Que a pandemia não acabe,
- Que a pandemia não acabe,
quiçá expresso, aliás, num discurso directo donde transpirasse a familiaridade de dois anos inteiros de hálitos partilhados (debaixo da máscara),
- Não me deixes, não me acabes, pandemia,
- Tu não me acabes, pandemia.

Alguns jornalistas dirão, escreverão
- Caem as máscaras,
uma expressão que, de tão reproduzida, tende a adquirir um sentido literal, a deixar a sugestão da imagem de uma máscara caminhando na rua e tropeçando num desses paralelos desconjuntados dos passeios nacionais, caindo enfim, com estrondo e ridículo, e caindo, por qualquer osmose corporativa, em simultâneo e em conjunto com todas as demais máscaras, como um imenso coro azul-hospital, donde a expressão
- Caem as máscaras.


Algumas pessoas perguntarão
- Assim, sem mais nem menos?
não querendo, em rigor, perguntar coisa nenhuma, antes expressando um desacordo em forma de pergunta, no caso o desacordo com o que lhes parecerá ser uma precipitação na desobrigação do uso de máscaras. Perguntarão
- Deixamos de usar assim, de um dia para o outro?
e novamente nenhuma dúvida real as ocupa, pois o que julgam é que assim (o ponto é este «assim») não está bem. E, se questionadas, explicarão
- Assim de um dia para o outro não pode ser, a pandemia ainda não acabou.
Dirão ainda
- Assim sem transição não pode ser, a pandemia ainda não acabou.
Ninguém por certo deixará de compreender a argumentação e a resistência e haverá por certo quem não deixe de avançar soluções para uma transição mais gradual, a saber:
  • o uso de meia máscara, tapando apenas um lado do rosto,
  • o uso de máscara, mas só sob o queixo,
  • a desobrigação de um dia para um outro que não aquele que se lhe segue.

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