Os números COVID-19: ou latos em excesso, ou inconsistentes, ou pouco consolidados

Foi noticiado, há cerca de uma semana, a trágica morte de uma criança de seis anos num hospital em Lisboa. A RTP titulou: "Morreu uma criança de 6 anos com teste positivo à covid-19". Tanto quanto sei, e mau grado algumas notícias sobre a investigação levada a cabo pela PGR, não se apurou, até hoje, a causa da morte.
E, no entanto, logo ficou nota de que este menino entrou na soma de óbitos da pandemia do novo coronavírus: a "quarta morte" na faixa etária dos 0-9 anos.


Olhando ao boletim de ponto de situação da DGS desse dia, não é possível confirmar que foi essa a contabilização feita - a escala do gráfico da segunda página inviabiliza essa leitura. Mas, se bem me lembro, o critério de mortalidade em vigor durante o período de pandemia que Graça Freitas foi descrevendo logo nas primeiras semanas da crise pandémica era, em síntese, este mesmo: todos os óbitos com diagnóstico de infecção por SaRS-CoV-2 são registados como óbitos COVID-19.

Dizia a notícia que "a causa de morte está a ser investigada". E, no entanto, a ligação à pandemia foi directa e imediata, mediática e estatisticamente.

Isto levanta uma questão capital: que números são os "números da pandemia"?
O simples facto de estes terem sido a principal sustentação material dos fechos, restrições e sucessivos estados de excepção decretados ao longo dos últimos dois anos em Portugal explica, por si só, a pertinência e a centralidade da pergunta.

Ontem mesmo, na SIC, ouvi Pedro Simas, um destes especialistas que fazem as delícias dos telejornais, a referir-se a termos pessoas internadas em ambiente hospitalar pelos mais variados motivos que, por terem entretanto tido um teste «positivo» ao novo coronavírus, entram para as contas dos internados COVID-19.
De resto, já aqui há dias o Público noticiava que a doença provocada pelo SaRS-CoV-2 não era o motivo de internamento de todas as crianças internadas em alas COVID-19.

[actualização 28/01/2022: CNN e Público remetem (aqui e aqui) a um documento do Ministério da Saúde para noticiar que, dos internados COVID-19, apenas pouco mais de metade se encontra nessa situação por força de infecção pelo novo coronavírus. Os restantes encontram-se hospitalizados por outros motivos, mas, por terem tido um teste «positivo» ao SaRS-CoV-2, foram alocados nas chamadas alas covid.


O bastonário da OM afirma ter já pedido esclarecimentos urgentes à tutela, uma vez que, pasme-se, isto "pode mudar radicalmente aquilo que são os números diariamente apresentados" e, consequentemente, a realidade transmitida à população.]

No domingo passado, o mesmo Público perguntava: "Quantas pessoas morreram realmente de covid-19? Há várias maneiras de contar". O título é, pela sua abertura e pelo seu sublinhado metodológico, rigoroso. Já o lead não o é tanto, sobretudo na medida em que começa logo por afirmar que o valor de 5.5+ milhões de mortos estimados pela OMS "é quase certo que seja uma subestimativa". E isso fica posto em questão justamente no próprio texto do artigo. O que fica claro é, isso sim, que "há várias maneiras de contar", não sendo certo, aliás, que não tenha havido, em muitos casos, uma sobrestimativa.
E mais: resulta do que ali vai dito que a consolidação destes números, pela sua natureza e escala, é complexa e dificilmente se compatibiliza com boletins semanais ou mensais, quanto mais diários. Dá que pensar.

De facto, se olharmos ao que acontece no tratamento estatístico doutras doenças, vemos que são fechados ao cabo de um intervalo temporário muito mais alargado. Por exemplo, só há pouco mais de um mês se conheceu um relatório da Organização Nacional das Doenças Respiratórias sobre a mortalidade... do ano de 2019. (a propósito, o número apurado foi de 36 mortes/dia, num total de 13.305 óbitos; a média diária de mortos COVID-19 é, calculando o actual registo de 19.703, inferior a 30 mortes/dia).

Acho que meço bem as palavras quando digo que as estatísticas de óbitos e internamentos por COVID-19, o principal elemento de decisão e comunicação na gestão política desta crise pandémica, são ou muito latas, ou inconsistentes, ou pouco consolidadas.


Uma última palavra acerca de números. Afigura-se-me significativo que, nos últimos tempos, vários investigadores e associações venham alertando para as chamadas «pandemias escondidas». O jogo de palavras tem uma mensagem clara: o foco desproporcionado na pandemia da COVID-19 contrasta vivamente com outras "pandemias" que grassam na sombra dos holofotes mediáticos.

Dois exemplos:
A pandemia negligenciada ("the overlooked pandemic") da resistência aos antimicrobianos (antibióticos), que, segundo artigo recentemente publicado na Lancet, será responsável por um valor estimado de 1.27 milhões de mortes directas em 2019.

E a "pandemia silenciosa" do suicídio entre os menores de 49, em Espanha, ilustrada em gráfico do El País:


Dá que pensar.
E que haja alguns pseudo-críticos da gestão pandémica de segunda categoria, ora escolhidos a dedo para gáudio das audiências televisivas, ora destacando-se momentaneamente do circo degradante da campanha eleitoral para as Legislativas do próximo domingo, que declaram as coisas mais imbecis e desarticuladas (seja por inépcia e cegueira, seja simplesmente por uma muito menos condenável incapacidade de lidar com a rapina dos media nacionais), serve muito mais a manutenção deste estado de coisas do que o seu legítimo contrário. Nada melhor, claro está, que um negacionistazinho risível para demonstrar, por A+B, a perfeita inevitabilidade e infalibilidade daquela que foi, até aqui, a gestão político-mediática da crise pandémica.

Mensagens populares deste blogue

Algo de errado se passa.

Desencontro, ou Enquanto as ervilhas cozem