Dos debates para as Legislativas 2022

É tempo de debates. Tem calhado não perder um único. Às tantas, torna-se ponto de honra: é que o que sai nos jornais do dia seguinte costuma ser uma coisa diferente do que tive oportunidade de testemunhar - e não quero, obviamente, beber de uma fonte inquinada.

O actual modelo de debates é mau. Rege-se por um aparato de "justiça" cuja bitola são uns cronómetros hediondos que as produções mantêm visíveis ao longo da transmissão. A coisa vai ao ponto de já inúmeras vezes ter visto raciocínios que importava conhecer e que nem sequer prometiam prolongar-se muito mais cortados por um burocrático "tenho de equilibrar os tempos". Acho que o formato é importado e, por isso, qualquer crítica que se lhe faça encontrará sempre muitas resistências por parte do nativo. Mas que sentido faz, e que justiça é, uma tamanha submissão a uns segundos aqui, outros segundos acolá? Enfim, o histórico nacional está indelevelmente tingido por tanto favorecimento mais ou menos velado que talvez seja natural caírem as gentes em certos exageros - para mais estas das televisões, que vivem numa vénia perpétua às audiências.

Dito isto, é evidente que o problema central deste modelo de debates é o tempo estipulado à partida. Como raio se espera debater alguma coisa em condições em 25 minutos? Os resultados falam por si. Não só se não discute nem esclarece nada de substancial para o interesse nacional, como se potencia significativamente a dinâmica do sound byte, do faits divers e da simplificação caricatural das posições alheias. Isto obviamente favorece as televisões, que vivem dessas dinâmicas reles e não de debates sérios e "chatos".
Que o número de candidatos e a consequente multiplicação dos pares a debate (num total de 30 debates) imponham que a coisa seja breve, como vi o Ricardo Costa, da SIC, defender, parece-me duvidoso. Não só uma campanha eleitoral é objectiva e incondicionalmente importante - e deve, portanto, ser feito com toda a responsabilidade e cuidado inerentes a um serviço público -, como a bota não bate com a perdigota quando, depois dos 25 minutos dos debates, se prolongam por horas os comentários a esses mesmos debates.

De resto, um fenómeno curioso é o do tradicional "quem ganhou o debate?", por esta altura cristalizado numas notas quantitativas muitas vezes levadas à décima que, por exemplo, o Expresso tem usado na análise a cada debate. Não sei, francamente, o que é que aqueles números pretendem indicar - performance geral, fotogenia, retórica, validade das propostas, simpatia, canalhice, qualidade das cartolinas exibidas...? -, mas a cada interveniente é atribuída uma nota de 0 a 10 e, no final, faz-se a média aritmética do bitaite de cada um dos comentadores que integram o painel. Impecável.

Em paralelo, há outras variáveis a ter em consideração. Desde logo, a prioridade mediática de certos debates face a outros. Partilharam hoje comigo uns dados sobre o tempo de antena dedicado aos debates de André Ventura com Rui Tavares e António Costa: sete minutos e hora e meia, respectivamente. Não consegui confirmar os números (que serão de um estudo de um professor do IST), mas estou que pelo menos a escala é um indicador fidedigno da realidade. Naturalmente que um e outro terão um interesse mediático e, admito até, uma relevância eleitoral distintas, mas, a serem verdade (e a minha impressão pessoal é de que não andarão longe), estes números mostram um desfasamento que, porque aponta a uma lógica de construção interessada da realidade, compromete a própria validade da mensagem jornalística. Este tema da construção interessada da realidade merece, aliás, que voltemos a ele em ocasiões futuras.

Quanto ao que tem sido o conduto dos debates, muito pouco há a assinalar. O advento de novas eleições legislativas não enche ninguém de esperança e isso é, por si só, sintomático. Os protagonistas político-partidários representam uma triste solução de continuidade de um estado de coisas em que o bem-comum está puramente arredado da agenda.
Não são "todos iguais", naturalmente. Mas o nível geral de falta de honestidade intelectual é degradante - ora porque não se olha a meios para atingir certos fins, ora porque a dinâmica mediática assim o determina, ora porque estrategicamente é isso o conveniente, ora porque algum défice cognitivo ou emocional o impõe - de uma maneira ou de outra, nenhum eleitor pode em consciência assistir a estes debates sem espanto e indignação. António Costa, Catarina Martins, André Ventura e Francisco Rodrigues dos Santos têm sido, neste particular, os mais patéticos.

Duas notas finais. Uma, sobre o "caso" Rui Rio e a prisão perpétua do Chega! Tive oportunidade de ouvir o debate que esteve na origem da confusão - aliás provinda de um tweet sabido de Costa - e não coube em mim de surpresa e confusão. A coisa, com o passar dos dias, vá-se lá entender porquê, ganhou vulto. Quando, no debate seguinte, vejo Rio a ser confrontado com o caso "porque se tornou um facto político" - foram estas as palavras de Clara de Sousa - e vejo, nessa mesma ocasião, Catarina Martins a desconversar maliciosamente, confesso que até hesitei sobre se o problema estaria na minha capacidade de entender e interpretar Português. Este caso é um exemplo paradigmático de um vale-tudo que, a julgar por alguns comentários e pela própria sucessão dos acontecimentos, pode mesmo colher. É o que temos.

Outra, sobre a opção do PCP de, na prática, estar presente única e exclusivamente nos debates transmitidos em sinal aberto. Um dos argumentos levantados pelos comunistas é, dalgum modo, o eixo paradigmático das opções das televisões: a de uma putativa corrida a dois que desmerece todos quantos caiam fora dessa parelha. O corolário deste eixo paradigmático é talvez o destaque dado ao debate entre Rio e Costa, que será alvo de um tratamento diferenciado.
Bom, a corrida é mesmo a dois (PS e PSD, obviamente), só usei o «putativa» porque não queria perder a oportunidade de dizer putativa. Putativa. Seja como for, o tratamento dado aos demais partidos não deve traduzir esta presunção (que não deixa de o ser), mais não seja por uma questão de decoro.
De uma maneira ou de outra, isso mesmo foi sendo manifestado explícita e implicitamente no tema que dominou os primeiros debates: a inenarrável "governabilidade", expressa nos termos mais primários. Perguntou-se, com insistência e tenacidade, sobre o que faria cada um dos dirigentes partidários num conjunto complicado de cenários - se integrariam X, se "dariam luz verde" a Y, se formariam governo com Z, quais as "linhas vermelhas" para o isto ou aquilo, o diabo a sete. Nestas futurologias pueris e, em última análise, redutoras do papel da generalidade das candidaturas, gastaram-se demasiados, preciosos minutos.
Mas os moderadores faziam questão de repetir: "é o que os portugueses lá em casa querem saber". E se os senhores moderadores, benza-os Deus, o dizem, não serei eu a desmenti-los.

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